Recentemente, completou-se mais um aniversário do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria. Penso nisso todo dia quando embarco em uma lotação de Porto Alegre – o que não é sempre, mas quando acontece, a associação é inevitável, e não é gratuita, como se pode pensar.
Para aqueles refugiados no conforto classe média do automóvel próprio, e portanto meus potenciais inimigos, deixem-me explicar como a coisa funciona em Porto Alegre há uns anos quando o assunto são as lotações: você embarca e, em vez de pagar na saída, ao indicar o lugar em que quer desembarcar, como era o costume, hoje em dia você paga na entrada. Não sei qual foi o motivo da alteração, ocorrida ali pela metade da década passada, se estavam ocorrendo muitas altercações entre motoristas e passageiros que esperavam chegar na parada para dizer que estavam sem grana, não sei realmente. Sei que, como usuário do sistema, um dia lá por 2015 subi no carro e o motorista me informou que deveria pagar antes desta vez.
A questão é que lotações nunca tiveram cobradores, desde a sua origem como simples Kombis pintadas de vermelho e com o nome de “táxi-lotação”. Aliás, uma das vantagens sempre apontada por gente mais velha do que eu (que agora já sou velho eu próprio) quando pegava lotação é que, sem cobrador, também não havia roleta, facilitando o ingresso de quem pegou o carro carregado de compras. Só que outra consequência disso é que quem recebe a passagem e faz o troco é o próprio motorista. A essas alturas, quase todo mundo tem também o cartão TRI que vale para lotações, e é só aproximar o cartão do sensor. Mas um certo número considerável de pessoas, entre as quais me incluo, paga com dinheiro. O que significa que o motorista recebe a grana e devolve o troco logo que tu sobe no veículo.
Assim, para efeitos gerais, a orientação oficial dada aos motoristas, sabemos, é que só deem a partida depois de pagar a passagem. Mas, na prática, o motorista só te espera embarcar e já parte com o carro de novo, e faz o troco com a lotação em movimento, alguns se esticando para trás para te alcançar as notas e moedas enquanto o carro já está rodando a uns 40km/h, talvez.
Conversando com mais de um motorista ao longo das viagens que precisei fazer, ouvi deles que, sim, há a orientação de receber e só depois dar a partida. Mas há também uma cobrança intensa por cumprimento de horários que se tornou mais complexa depois da adoção dessa nova medida. Então, na prática, há duas orientações oficiais que se anulam e, portanto, uma delas é ignorada – a que é menos passível de acarretar punição como descontos ou coisas do gênero. Logo, a realidade é que, quando a lotação é paga em dinheiro, o motorista faz o troco e dirige o carro ao mesmo tempo.
“Não dá nada”
É o tipo de situação que pode prosseguir indefinidamente sem que nunca algo de errado aconteça. Mas também é o tipo de situação em que um dia pode dar algum perrengue gigantesco, com o motorista virando pra trás para alcançar moedas e perdendo de algum modo o controle do carro, indo parar na calçada, atropelando uns quatro ou cinco de uma vez, ou atravessando um portão ou um muro residencial. Será só nesse momento que todo mundo vai se perguntar como é que isso pôde acontecer. As empresas, cobradas pela opinião pública, vão lembrar que sempre orientaram os motoristas a esperar antes de dar a partida, e que isso não devia ter sido problema, foi um caso isolado provocado pela imprudência negligente de um motorista precipitado etc.
E por isso eu sempre me lembro da Kiss quando subo numa lotação. A Kiss e o sistema de “cobrança móvel” em lotações fazem parte do mesmo tipo de mentalidade bastante brasileira, não é bem aquele “laissez faire“, o “vai deixando” francês tão caro ao discurso liberal, não. Aqui a coisa se assemelha mais a uma espécie de “proibido fazer, mas se quiser, faça, só não seja pego” (imagino que não exista uma expressão popular francesa correspondente porque “Ne peut pas faire, mais si tu veux, fais-le, mais ne te fais pas prendre” seja muito comprido, mas imagino que o nosso “jeitinho brasileiro cumpra parte do papel tão bem quanto). Após a tragédia da Kiss, por um tempo, a imprensa e a sociedade acordaram para uma realidade vivida mas voluntariamente ignorada: o fato de que no Brasil é praticamente uma política oficial tomar os cuidados mínimos, torcer pela estatística e esperar pelo desastre.
O número de edifícios públicos sem PPCI era gigantesco – inclusive entre prédios tombados. Muitos dos prédios comerciais de uma cidade como Porto Alegre ainda funcionavam sem a coisa mais básica, que é um alvará (a recente legislatura de Porto Alegre, uma cidade completamente entregue ao neoliberalismo selvagem, decidiu resolver esse problema aumentando a listagens de exceções que não precisam de alvará). Seria tentador pensar que esse é o caminho inevitável que se percorre quando se vive em um país com economia historicamente instável e com uma brutal e cada vez mais ampla desigualdade econômica. Tudo sendo caro e a maioria tendo muito pouco dinheiro, confrontado com uma necessidade legal ou técnica em benefício da segurança, o cidadão faz uma conta e deixa a medida de fora confiando que ela não será necessária dado que o evento para o qual aquela preparação seria requerida é raro. Só que na maioria das vezes não estamos falando de um cidadão comum construindo uma casa e economizando nos materiais porque tem que comprar tudo parcelado, muitas das “gambiarras” fora do projeto que vieram à tona depois do incêndio em Santa Maria eram tomadas por gente da iniciativa privada querendo cortar custos no seu “empreendimento” ou até mesmo imóveis tombados pelo poder público sem o básico de um plano de combate a incêndio. A legítima política do “não dá nada”, e de fato na maioria das vezes não dá nada. Até que um dia dê.
Árvores
Outro motivo que me fez pensar muito na Kiss foi o recente rescaldo dos estragos envolvendo a tempestade que atingiu parte do Estado na semana retrasada. Não foi uma tempestade inédita, já tivemos outras, uma delas provocou muita destruição ali por 2016, mas felizmente nenhuma morte, ao contrário deste episódio de agora. E mesmo assim, ficou tristemente claro que ninguém tem um plano para situações assim. O prefeito, a porra do prefeito, estava pedindo motosserras no Twitter enquanto tomava “ghosting” da Equatorial, como dizem os mais jovens.
E aí chegamos a uma das práticas mais… tristes, para usar uma palavra que não me leve a ser processado, da política partidária organizada, e que tem sido a desculpa perfeita para que o poder público entregue de presente para empresários amigos empresas essenciais à vida comunitária (aquela mesma para a qual o nosso prefeito soube apelar quando precisou de motosserras. Você sucateia o serviço que devia prestar, você ignora os alertas e não faz um planejamento sério para emergências. Aí um dia a água bate na bunda e você precisa desviar o assunto para algum tipo de culpado.
A marca do urbanismo “realizador” de Porto Alegre nas últimas gestões segue um padrão bastante discernível: declara que algo está vazio ou abandonado (quando, na verdade, está apenas ocupado por gente pobre ou fora do radar do grande Capital), consegue a adesão da imprensa para a tese, repetida à exaustão em colunas de opinião de empresas de comunicação que, curiosamente, também são donas de construtoras, manda umas patrolas para arrancar árvores ou derrubar casas e constrói algo impregnado de breguice pós-moderna com “barzinhos” e “quiosques” que cobram um rim por uma lata de refri instalados para que a burguesia da cidade possa “redescobrir” o lugar . Quando esse lugar nunca esteve “perdido” de fato, sendo o exemplo mais flagrante a orla e seus projetos de “remodelação” repletos de zonas cinzentas – curiosamente, zonas cinzentas que tanto mais se proliferam quanto menos há “zonas de sombra” na orla, dada a tara do poder municipal por derrubar árvores.
E no caso dos temporais mais recentes, as árvores parecem estar sendo sistematicamente vendidas como as grandes vilãs simplesmente porque caíram (e é mais do triste, aí já é meio nojento mesmo, o quanto nomes da imprensa local, alguns deles gente que eu conheço há anos, estão ansiosos para comprar essa versão). O fato é que já na época do temporal de 2016 tinha-se pouca informação sobre as árvores da cidade, seu estado, sua condição de saúde, sua localização. A maioria das árvores que caem ou oferecem riscos caem por falta de manutenção e cuidado preventivo, cada poda demora meses, não parece haver técnicos ou pessoal suficientes para fazer o trabalho (motosserras, o próprio prefeito fez questão de confirmar que não havia).
Logo, a política oficial da prefeitura há um bom tempo para gerir o verde nesta cidade em que os projetos megalomaníacos das grandes construtoras derrubam árvores mais velhas do que eu e o prefeito juntos botam um gramado mequetrefe e uma cerca verde vagabunda como uma “contrapartida” parece seguir um roteiro previsível também pautado pelo “não vai dar nada”, mas com um indício perturbador de “se der, melhor”: você não poda as árvores, nem cuida, durante administrações sucessivas. Elas são infestadas por doenças plenamente tratáveis, como erva de passarinho. Um dia, elas caem. Ou invadem o sacrossanto terreno do poste de luz. Se você tiver sorte, elas machucam alguém no processo. Aí você tem o apoio de parte da população para cortar as outras.
O escritor italiano Stefano Mancuso é um dos grandes divulgadores da biologia atualmente, e seu trabalho me foi apresentado pelo professor Geraldo Luiz Soares, meu amigo cientista. Mancuso criou um conceito muito bem sacado e muito útil chamado “cegueira verde”, exemplificado por ele em alguns TEDs mostrando a foto de uma raposa com uma floresta ao fundo. Ao perguntar à audiência o que está na foto, a resposta quase sempre é “uma raposa”. As árvores ao fundo são só isso: pano de fundo. O ser humano percebe construções, percebe o movimento de outros seres vivos. Quanto ao mundo verde que compõe o entorno da cena, é apenas “paisagem”, e o fato de termos essa expressão usada no sentido de uma cena vazia ou de uma fisionomia em que nada acontece ou transparece é também parte da questão.
Pois eu já acho que em Porto Alegre a administração municipal está um passo além. Seria bom que elas fossem mesmo invisíveis para escapar da sanha predatória de quem as quer colocar abaixo. Vivemos em uma cidade e tornamos as árvores, essenciais para a manutenção até mesmo da temperatura da cidade em níveis aceitáveis, nossas inimigas. O discurso do babaca médio porto-alegrense é o mesmo: elas sujam a calçada, elas atrapalham a porta do carro, elas se emaranham no fio, elas caem. O porto-alegrense está transformando um ser vivo que passava décadas no mesmo lugar em alvo móvel… Que isso esteja se processando numa cidade que já protagonizou momentos-chave da luta ambiental no Brasil é meio de encher o saco ou doer coração, não saberia apontar qual incomoda mais agora.