“Inspire-se em nossas realizações, não em nossa existência.”
Esse foi o recado dado por Allison Lang, jogadora do time de vôlei sentado paralímpico do Canadá, antes de competir nos Jogos Paralímpicos de Paris. A atleta nasceu sem a parte inferior da perna esquerda, abaixo do joelho, e deu um depoimento ao jornal Today onde conta como o capacitismo influencia sua vida, seja no cotidiano ou quando está competindo. O preconceito contra pessoas com deficiência já foi tema de várias colunas que escrevi aqui na SLER. Lelei Teixeira também escreve sobre o tema e nos lembra que “a visão capacitista ainda faz pessoas com alguma deficiência serem vistas como inferiores ou menos capazes”.
Esse rótulo de pessoa incapaz é contestado por Fernando Fernandes, atleta paralímpico, tetracampeão mundial de canoagem, apresentador de TV, praticante de esportes radicais e desafios extremos, mesmo após o acidente de carro que o deixou paraplégico, em 2009. Como explicou em entrevista à revista Trip: “Deficiência física é uma coisa, incapacidade é outra. As pessoas só vão entender isso quando perceberem que o que eu faço, elas não fazem. De fato, se a gente for subir uma escada, eu me torno incapaz. Mas muita gente não rema 150 quilômetros no rio Xingu, como eu. Ou seja, todo mundo tem capacidades e incapacidades.”
Aliás, embora muitas pessoas ainda acreditem que o “para” nas Paralimpíadas significa paraplégico, de acordo com o Comitê Paralímpico Internacional, elas estão erradas. O “para” significa “paralelo”, lembrando que eles acontecem paralelamente às Olimpíadas e ambos os movimentos olímpico e paralímpico convivem lado a lado. Muitos ainda usam a expressão “para atleta” que está equivocada. Em ambos os eventos, temos atletas de elite representando seus países. Atletas paralímpicos têm deficiências físicas, visuais ou intelectuais, mas treinam duro e competem em alto nível.
Para quem pensa que o treinamento da equipe de Allison é fácil, ela lembra que sua rotina é intensa e rigorosa: inclui sessões de musculação na academia ao menos três vezes por semana, treinamento de condicionamento físico também três vezes semanais, além de quatro dias de treinos em quadra.
Tanta disciplina e dedicação ao esporte não impede que estranhos a abordem na academia com comentários como: “Que bom que você conseguiu vir à academia hoje”. Tais observações, além de subestimar uma atleta de elite devido à sua deficiência, revelam uma surpresa que diz: “este não é o seu lugar”. Não, Alisson não merece uma medalha por ir à academia, assim como o porto-alegrense Aser Matheus, que saltou 5,76 metros para conquistar a prata no salto em distância. Eles conquistaram suas medalhas em competições disputadíssimas.
Outro comentário recorrente é: “Se eles conseguem fazer isso sem pernas, então não tenho desculpa para não correr.” Esse tipo de pensamento é rotulado como “inspiration porn”: retratar as pessoas com deficiência como inspiradoras por sua deficiência. O termo foi popularizado pela ativista Stella Young em palestra Ted Talk em que dizia “eu não sou sua inspiração: não, muito obrigado”.
A primeira vez que li sobre essa curiosa expressão foi no livro “Cartas de Beirute: reflexões de uma mãe e feminista sobre autismo, identidade e os desafios da inclusão”, de Ana Nunes. Em um dos excelentes ensaios da obra, Ana explica que esses memes, imagens e vídeos com cenas de “superação” de deficiências, são pornográficos, segundo Young porque se trata de uma forma de objetificação dos corpos com deficiência usados como veículo para transmitir uma mensagem de inspiração e motivação direcionada primariamente às pessoas sem deficiência. Exemplos clássicos: uma pessoa em cadeira de rodas fazendo exercícios na barra, ou uma criança com próteses correndo, e a mensagem: “A única deficiência na vida é uma má atitude.”
Como conclui Ana:
Aparentemente bem-intencionada, a representação das pessoas com deficiência sob a forma de “inspiration porn” ou de histórias incríveis de superação individual pode ser muito nociva à causa da inclusão, por reforçar o entendimento de que cabe à pessoa com deficiência adaptar-se à sociedade, em vez de caber à sociedade tornar-se mais inclusiva.
Afinal, inclusão é sobre direitos, sendo responsabilidade da sociedade e não da pessoa com deficiência, ou da forma como ela encara esses desafios cotidianos. Conforme aponta Young, “não importa o quanto eu ria ou mantenha uma atitude positiva, a escada na frente da minha cadeira de rodas não vai se transformar em rampa.”
Como os Jogos Paralímpicos, atletas cegos ou com deficiência física podem realizar façanhas incríveis, mas não conseguem transformar escadas em rampa, textos impressos em braille.
Os Jogos chegaram ao fim no último domingo, com o Brasil conquistando 89 medalhas e brilhando na quinta posição do quadro geral. Ao todo, foram 25 medalhas de ouro, 26 de prata e 38 de bronze. Para Allisson Lang, a maior vitória é mostrar às crianças com deficiência que elas podem ser atletas, que elas podem sonhar com isso, sendo o modelo que ela mesma nunca teve. Coroando sua primeira participação paralímpica, ela ainda ganhou uma medalha de bronze, pena que foi em uma vitória sobre a equipe brasileira.
Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais
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