A morte de Sílvio Santos, um ícone da televisão brasileira, foi o assunto que tomou conta das redes sociais e da mídia em geral nesse final de semana. Quem procurou, encontrou homenagens e críticas de todos os tipos. Não vou aqui falar sobre o legado do apresentador, tampouco um balanço de suas qualidades e defeitos. Até mesmo porque o maior significado desse momento foram as memórias afetivas que ele trouxe, os domingos na casa da minha avó em que a televisão ficava ligada no programa dele, desde o Domingo no Parque até o show de calouros.
Nessa data, vou falar de uma das minhas paixões: história judaica. E a extraordinária história de Sílvio Santos traz, junto de si, histórias comuns e extraordinárias da história judaica. Nascido Senor Abravanel, era chamado pela mãe de Sílvio Santos, algo comum em muitas famílias judias que nomes ancestrais se confundiam e se misturavam com os nomes brasileiros. Meu pai podia ser chamado pelo nome ídiche, Moishe, assim como de Mauro ou Maurício dependendo da ocasião. Meu sogro, era José Alexandre, mas era chamado em casa pelo nome ídiche, Sender, nome estranho aqui no Brasil, que logo virou Senha, apelido que carregou por toda vida.
Um homem incomum e uma história extraordinária
Sílvio era Senor e, para entender esse nome incomum, é preciso lembrar da trajetória incomum de um homem excepcional: Don Isaac Abravanel. Como o próprio Sílvio Santos lembrou, seu nome vinha do título honorífico de seu ascendente em uma rica família, uma reminiscência do tratamento dado ao Senor Abravanel, cujas origens, dizia-se, remontavam ao Rei David.
Isaac Abravanel nasceu em Lisboa no distante ano de 1437. Desde pequeno conviveu com reis e negócios já que seu pai, Judá Abravanel, servia como tesoureiro real e era um próspero comerciante, premiado pelos seus préstimos à Coroa com “todas as honras, privilégios e liberdades que os habitantes cristãos desta cidade [Lisboa] desfrutam e devem desfrutar”.
Isaac superou seu pai, unindo à sua posição e influência política, à genialidade no trato com as finanças e à liderança comunitária, além de um importante trabalho filosófico, literário e de comentador bíblico. A obra de Abarbanel, como também é chamado, continua sendo estudada nos seminários rabínicos até hoje, sendo uma referência no pensamento judaico e na interpretação das Escrituras. Confesso que, toda vez que ele é citado em um texto importante, já penso que “Sílvio Santos vem aí”.
A vida de Isaac Abravanel foi marcada por altos e baixos. Sua posição na Corte portuguesa foi abalada após a morte do rei D. Afonso V. Com a ascensão de D. João II ao trono e a execução do Duque de Bragança sob acusação de conspiração, Abravanel foi alertado de que poderia enfrentar o mesmo destino. Em 1483, fugiu para o reino de Castela, que dará origem à Espanha, e perdeu sua fortuna pela primeira vez, confiscada por um decreto real.
Ao chegar a Toledo, cidade próxima a Madri e centro intelectual da época, dedica-se a escrever comentários bíblicos até que é chamado para administrar as receitas e abastecer o Exército Real que travava a guerra contra os mouros. Seu sucesso na missão lhe permitiu construir novamente sua fortuna e lhe abriu as portas da Corte, sendo um dos principais financistas de Fernando e Isabel de Castela.
Deve-se lembrar que estamos na transição da Idade Média para a Idade Moderna, do feudalismo para o mercantilismo, e a atividade financeira e o comércio são vistos como uma atividade indigna, sendo bastante exercida pelos judeus a quem eram restritas muitas profissões, sendo-lhes vedada a posse de terras e o ingresso no exército ou no serviço público.
A convivência harmoniosa com os soberanos espanhóis acaba em 1492, ano em que a Espanha é reunificada após a Guerra de Reconquista travada com os muçulmanos e Colombo descobre a América em uma expedição financiada, entre outros, por Abravanel. Para os judeus sefarditas, porém, essa é a data da expulsão dos judeus de Sefarad, o nome bíblico da Espanha. Isaac Abravanel tenta, sem sucesso, a revogação desse decreto que impõe o exílio aos judeus espanhóis – 300 mil, conforme suas memórias.
Como Sílvio Santos conta, é dada a oportunidade a Don Isaac de manter sua posição e sua fortuna, bastando que se convertesse ao catolicismo, o que ele recusa, mostrando que não topa tudo por dinheiro. A expulsão espanhola dispersou a maior e mais antiga comunidade judaica da Europa para a Holanda, para Itália e para partes do Novo Mundo. E Abravanel embarca para Nápoles, onde se dedicará ao comércio e completará os seus escritos sobre o livro dos Reis. É considerado como o último grande intelectual do judaísmo espanhol e o líder de seu povo naquele período atribulado por muitas perseguições.
Seus comentários bíblicos são antecedidos por escritos autobiográficos onde recorda sua vida, mostrando o entrelaçamento entre as suas tragédias pessoais e de seu povo. Discorre também sobre política e economia, defendendo a forma republicana de governar ao mesmo tempo que contesta os excessos do poder absolutista dos reis.
Quando os franceses tomam Nápoles, Abravanel, mais uma vez, perde seu patrimônio, foge apressadamente e inicia um périplo por vários locais, até se estabelecer em Veneza, onde seus serviços são requisitados mais uma vez. Sua última missão diplomática será negociar um acordo com Portugal que, após a viagem de Vasco da Gama, passa a dominar o comércio com as Índias. Morre em 1503.
Nos últimos anos de sua vida, escreve uma trilogia de livros marcados por um evidente messianismo. A expulsão da Espanha, para seus contemporâneos, era um trauma comparável à destruição do Templo e à dispersão dos judeus pelo mundo após a conquista da Terra de Israel pelos romanos. As gerações seguintes serão marcadas pela entrega ao misticismo judaico, à Cabala e pela promessa messiânica, tentando, de alguma forma, dar sentido à catástrofe vivida.
Esse movimento vai ter seu ponto culminante no século XVII, quando Sabatai (ou Shabtai) Tzvi se proclama como Messias e incendeia as massas judaicas pela Ásia e Europa, prometendo destronar o Sultão turco e conduzi-los à Terra Prometida. O Sultão, que não era bobo nem nada, chamou o candidato a Messias para Istambul e disse que ele ou se convertia ao Islamismo ou morreria. Quando Shabtai abandona o Judaísmo, o movimento praticamente se extingue. Shabtai era oriundo da cidade de Esmirna, no Império Otomano, onde também nasceria, no início do Século XX, Rebeca Caro, a mãe de Sílvio Santos.
Pessoas comuns com histórias extraordinárias
Os israelitas expulsos da Espanha e, posteriormente, de Portugal, foram se espalhando pelo Império Otomano, do Norte da África até o Oriente Médio, onde já viviam desde tempos imemoriais, como em Esmirna, ou Izmir, importante cidade portuária turca localizada às margens do Mar Egeu. O livro do Apocalipse, no Novo Testamento, já menciona a comunidade judaica da cidade onde nasceu a mãe do dono do SBT, em 1907.
Naquela época, a comunidade judaica em Esmirna havia diminuído drasticamente, restando apenas cerca de 25.000 judeus, após uma série de episódios de violência antissemita que ocorreram a partir da segunda metade do século XIX. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o Império Turco se desintegrou, levando ao deslocamento de populações e ao redesenho do mapa, tanto naquela região quanto sobre os escombros da Alemanha e do Império Austro-Húngaro. A Grande Guerra foi seguida pela Guerra Turco-Grega (1919-1921) que devastou a região de Esmirna, destruindo a cidade e provocou um novo êxodo dos judeus locais.
Já Alberto Abravanel era originário de Salônica, na Grécia. Conta Sílvio Santos que seu pai e seu avô, Senor Don Abraham Abravanel, perderam o “Don” ao chegar no Brasil. Salônica, também um porto do Mar Egeu, era chamada de Jerusalém dos Bálcãs ou de “la madre de Israel”. Caso único de cidade grande com a população majoritariamente judaica, onde a língua mais falada era o ladino ou judeu-espanhol, idioma sefardita baseado no espanhol antigo e no hebraico.
A Salônica judaica, que por séculos fez parte do Império Otomano, foi incorporada à Grécia em 1912. Com o início do domínio helênico, a população começou a mudar, à medida que gregos vindos de outras regiões do antigo império otomano se estabeleceram na cidade. Esse processo foi acelerado pelo Grande Incêndio de 1917, que atingiu principalmente a comunidade judaica, destruindo 16 das 33 sinagogas da cidade, mais da metade das casas pertencentes a judeus na cidade. Como resultado, ocorreu uma grande migração.
A reconstrução das áreas atingidas pelo fogo que desabrigou mais de 50 mil judeus, empurrou-os para os arredores da cidade sendo seguida por diversas medidas tomadas pelos governos locais que foram restringindo a autonomia da comunidade judaica e impedindo a continuidade de seu modo de vida tradicional.
Cansados das restrições e perseguições que viviam, judeus do Velho Mundo dirigiam-se à América, à Palestina, entre outros destinos menos votados. Porém, as restrições à imigração impostas por Argentina e EUA na década de 20 direcionaram a imigração para o nosso continente, a um país que ainda mantinha abertas as portas da esperança: o Brasil.
Assim, procurando deixar para trás um passado de incertezas e perseguições, o casal Rebeca e Alberto chegava ao Rio de Janeiro, capital do Brasil, em 1924.
Uma história brasileira
Nascido em 1930, a vida de Senor Abravanel, conhecido por Sílvio Santos, é uma história brasileira bastante conhecida, contada e recontada nos últimos dias em todos os meios de comunicação possíveis. Da Lapa a São Paulo, de animador das barcas da travessia Rio-Niterói a animador de auditórios de rádio e TV. De comunicador a proprietário de um conglomerado empresarial avaliado em números que passam do bilhão de reais. Dono de um dos rostos e vozes mais conhecidos de nosso País, tornou-se parte inseparável do Brasil. Mas, por vezes, o Sílvio do Baú da Felicidade dava lugar ao Senor, de séculos e gerações de baús e malas arrumados às pressas para novos recomeços e novas travessias. Era quando lembrava de suas origens e dos desterros que o trouxeram até aqui.
Uma história que teve seu capítulo final em 17 de agosto de 2024 e que, de uma forma ou outra, faz parte da história de todos nós, brasileiros e brasileiras.
Foto da Capa: Montagem - Issac Abravanel e Sílvio Santos
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