No princípio era o silêncio, embora o dia começasse como sempre com seus barulhos diversos. Só não de galo cantando, cachorro latindo, galinha ciscando, pois não há ponto zero e o princípio havia sido precedido por outro princípio, de águas furiosas desabando na cidade. Então, havia sons de cães ganindo perto de cavalos estarrecidos e havia os gritos e havia os prantos e o barulho dos botes.
Já estávamos no meio daquela coisa, embora não víssemos o fim dela. E no meio era a repetição do silêncio, entremeado pela repetição dos barulhos. Havia uma prosa pequena, mas não era aquela do dia começando com um bom dia no mercado, um abraço na farmácia, um sorriso para a criança de óculos esperando para ir à escola. Nem escola tinha mais. Era uma prosa concreta, insuficiente.
Agora não se sabe mais de onde veio o princípio ou quem teria sido o primeiro poeta. Há quem insiste em Deus, aquele que era tudo e todos, mas estávamos zangados com ele e o poeta precisava ser gente. A gente lançou um verso qualquer, sílabas brincando com seus sons até encontrar algum sentido que alguém ouviu. E o novo começo continuou.
E continuou com a quebra daqueles silêncios todos, a expressão daqueles barulhos doidos e a possibilidade de recuperar a dignidade presente na expressão humana, não importa onde, quando e sob que circunstâncias. Alexandre Brito, Dilan Camargo e eu tínhamos quatro dias para convocar outros poetas e produzir uma antologia que ritmasse nossos barulhos a fim de levar poesia aos abrigos e resgatar o que dela ainda havia por lá.
Ora dirão, poesia? É preciso bote, jet-ski, casa seca, calor, pão, colchão, produtos de higiene. E, sobretudo, água potável, em meio a tanta água inadequada. Mas nem sempre a experiência é um par de faróis voltados para trás, segundo a expressão do poeta Pedro Nava e, na minha, estavam os anos que passei banhando de poesia crianças separadas de seus pais, por terem sido abusadas, negligenciadas, maltratadas.
Levariam meses, talvez anos, para recuperar uma família e precisavam, ali e agora, serem alimentadas e aquecidas, no rigoroso inverno francês. Mas precisavam também, agora e ali, contar o que estavam vivendo, sentido, sofrendo e isso não se faz diretamente. Precisa poesia, conto, desenho, história e muita metáfora. Assim o fizemos e o menino Gael encontrou no lobo uma imagem para desenhar o pai. E Brigitte, na fada, um desenho para a mãe, e a vida recuperava alguma dignidade nos pequenos corpos alimentados e aquecidos.
Aqui, no RS, em quatro dias, uma legião de poetas a postos disse presente e, às pressas, na urgência de recuperar a dignidade poética, salvaram as palavras que podiam. E, longe de qualquer ideal de perfeição, entregaram o poema que salvavam. Estão todos juntos no livro eletrônico (as gráficas inundadas não podem imprimir) Sob as águas – sobre a esperança, com uma capa lindamente ilustrada pela Laura Castilhos.
Ali tem soneto, haicai, prosa poética, urbana, gauchesca, curta, média longa, todos prontos para banhar de metáforas a gente dos abrigos para onde estamos indo. Ali há poetas consagrados, iniciantes, acadêmicos, bandalhos, todos prontos para banhar de metáforas quem encontrar pelos caminhos molhados. Sim, com poesia, produto de utilidade pública e notória e que também não pode faltar nos dias e nas noites de todos nós.
O livro está nas redes, mas também pode ser encontrado no site da Bestiário, essa editora que sabe que, com ou sem enchentes, uma vida sem poesia que a conte é muito besta para ser vivida.
Nota: Leia ou baixe livro gratuitamente aqui nesse link.
Foto da Capa: Ilustração de Laura Castilhos
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