A viúva do saudoso Moacyr Scliar, Judith Scliar, está preparando uma série de atividades para o fim deste mês como forma de lembrar os 20 anos da eleição e da posse do escritor na Academia Brasileira de Letras. Um dos eventos programados será realizado no dia 28 de agosto, às 19h30min, na Federação Israelita do Rio Grande do Sul, um debate sobre os 50 anos de um de seus romances mais significativos, O Exército de um Homem Só. A mesa, intitulada O Herói Solitário de Moacyr Scliar, terá a participação de Regina Zilberman, Carlos Gerbase, Abrão Slavutzky, Cíntia Moscovich e Túlio Milman.
Além de ser, claro, leitor das suas obras desde a adolescência (a minha, não a dele), tive a sorte de conviver com Scliar profissionalmente por algum tempo. Primeiro como repórter de Geral em Zero Hora. Colunista do caderno Vida, Scliar era um frequentador constante da editoria, que também abrigava sob seu guarda-chuva a equipe que editava o suplemento. Ele sempre aparecia para discutir o tema de capa do caderno daquela semana de um modo a conseguir ajustar sua coluna ao tópico central – nesse sentido, dizia textualmente que não curtia muito os temas muito abstratos. Ele era um admirador tão fervoroso da ilustradora que trabalhava para complementar suas páginas, Bebel Callage, que não gostava de escrever algo que fosse muito vago e que não tivesse ao menos um elemento concreto para a ilustradora.
Pelos seus livros, Scliar sempre passou a impressão de ser um humanista gentil. Nem sempre essa impressão se confirma quando estamos diante de um escritor de carne e osso – e, ao contrário do que achava a galerinha sensível contemporânea viciada em apontar gatilho em tudo, nem acho que seja para confirmar mesmo, a melhor vida de um escritor sempre será em seus livros. Mas em casos raros, o escritor em pessoa corresponde integralmente à impressão que se forma em sua leitura. Era o caso de Scliar, um cara gentil, que não negava conversa e era um grande narrador de causos. Também comentava coisas que havia considerado interessantes na literatura médica que vinha acompanhando (ele insistia que, se o cara decidia tomar café, havia um tipo que devia ser evitado a qualquer custo por ser prejudicial para o coração – infelizmente, não me lembro se era o passado ou o solúvel, e se eu tiver um infarto em breve, vocês saberão que escolhi o errado)
Fui parar depois no Segundo Caderno de Zero Hora e depois de algum tempo estava escrevendo sobre livros. Aí meu contato com Scliar se tornou de fato frequente. Viajado e muitíssimo bem-informado, ele sempre aparecia com uma palavra sobre algo que havia visto, lido, perguntava se tínhamos intenção de falar sobre algo nas próximas edições, senão ele mesmo poderia escrever – e escrevia, nunca perdeu um prazo, por mais exíguo que fosse, tinha com a palavra uma facilidade tal que se tornou folclórica.
Quando conto essas anedotas, não quero implicar de modo algum que Scliar era meu amigo. Eu o entrevistei várias vezes, falamos muito sobre literatura e, embora ele próprio me tratasse com grande e calorosa familiaridade, continuei chamando-o sempre de “professor”, uma reverência da qual nunca abri mão não apenas para ele como outros grandes veteranos que encontrei pelo caminho. A questão aqui é essa mesmo: Scliar era tão gentil e acessível que podia fazer alguém sentir-se próximo a ele mesmo que o contato fosse apenas profissional. Era uma personalidade calorosa, sempre com uma palavra cordial e elegante.
Com a proximidade dessas efemérides programadas para marcar algumas datas redondas de sua trajetória, portanto, me senti inspirado a fazer uma homenagem a Scliar retomando uma essa lista que foi publicada no jornal no dia seguinte ao da morte do autor. Na época, os textos sobre os livros precisaram ser bastante curtos devido a questões de espaço. Achei que valia, portanto, compartilhá-la em uma versão mais extensa e cuidada. Scliar publicou mais de 80 livros em vida, mais de um por ano de vida. Assim, na lista a seguir deixei de fora exemplares de sua literatura infantil e infanto-juvenil, bem como de suas coletâneas de crônicas. As primeiras porque não li tudo o que Scliar fez e não sou o melhor juiz de valor desse tipo de gênero, que tem suas especificidades – eu não tenho mais 10 ou 15 anos e me sinto muito feliz por isso, inclusive. As segundas porque nunca fui muito fã de crônicas em particular, e acho que em uma obra com oito dezenas de títulos, eu preciso abrir espaço para o que considero essencial na obra de Scliar. Se você nunca leu nada dele, certo, vai lá e lê as crônicas. Se você quer ter uma ideia melhor de conjunto, acho que a seleção a seguir é mais produtiva. Em um corpus tão vasto como a obra de Scliar, é uma leitura possível:
1. A Guerra no Bom-Fim (L&PM, 1972)
Em seu primeiro romance, Moacyr Scliar, já na época aclamado contista, narra uma evocativa história de formação. O menino Joel recorda-se de sua infância nos anos 1940 no bairro judaico do Bom Fim, em Porto Alegre. Scliar empresta da tradição oral e literária judaica o humor agridoce que ele tornaria marca de sua ficção. O centro do romance são as recordações de um menino no Bom Fim quase aldeia, reduto de imigrantes que evoca em cenário diverso o shtetl europeu. A descoberta da maturidade de Joel em meio aos ecos da guerra na Europa dotam o livro de uma atmosfera mágica que mistura as experiências de infância do garoto com o conflito imaginado pelas notícias que chegam da Europa. “As balas zuniam no ar, os Stukas e Messerchimitts roncavam sobre Capão da Canoa“, escreve em certa passagem Scliar, lançando as bases que seguiria dali em diante em sua carreira de romancista.
2. O Exército de um Homem Só (L&PM, 1973)
Comunista durante a juventude, Scliar faz do protagonista Mayer Guinzburg, o “Capitão Birobdjan”, sua versão desencantada do Quixote — bem como um símbolo da presença judaica na sociedade brasileira. Imigrante russo, Birobidjan chega a Porto Alegre como um utópico idealista, pregando a ideia de um mundo melhor por meio do socialismo. À medida que o livro avança, os sonhos de Mayer vão sendo deixados de lado por concessões sutis ou nem tanto ao “sistema”, à vida que se espera de um judeu bem estabelecido na sua comunidade, ao matrimônio respeitável, à imagem caricata de estabilidade burguesa. Birobidjan primeiro se torna um fazendeiro socialista que vive existência comunal com os animais (a utópica Nova Birobidjan), vai trabalhar atrás de um balcão, torna-se empreiteiro de construção civil, empresário arruinado e finalmente uma ruína abandonada em uma pensão.
3. Os Voluntários (L&PM, 1979)
Não sei explicar direito por quê, dado que não reli este livro nos últimos 25 anos, mas é meu romance favorito de Moacyr Scliar, desde meus 23 anos de idade. Talvez pela caracterização pitoresca e cálida de seus personagens, moradores da Rua Voluntários da Pátria, em Porto Alegre, que representam cada qual a seu modo vertentes das linhas que fizeram o Brasil e, ao mesmo tempo, os lados opostos nas crises do Oriente Médio. Em meio a uma colorida galeria de criaturas, dominam a narrativa os donos judeus de uma lojinha na Voluntários, ao lado de outra, de propriedade de um palestino, Samir. Os conflitos, confrontos, zangas e implicâncias entre os dois vizinhos e concorrentes são a representação miniaturizada de vários elementos de discórdia entre judeus e palestinos no cenário internacional maior. Mas, em uma nota otimista, todos terminam por se juntar numa quixotesca missão comum sobre a qual falarei pouco, mas que é responsável pela reunião do grupo de “voluntários” do título — referência à rua de Porto Alegre, ocupada por um comércio decadente e por uma zona de prostituição famosa até hoje, mas também aos voluntários da pátria que deram de fato nome à rua, recrutados para a Guerra do Paraguai, e muitos deles bem pouco “voluntários”, é preciso dizer.
4. O Centauro no Jardim (Companhia das Letras, 1980)
Uma das obras-primas de Scliar, que aqui exacerba ao limite da fábula o uso do fantástico já recorrente em seus livros anteriores. Em uma localidade do interior gaúcho, o quarto filho de uma família de imigrantes judaicos nasce centauro. Metáfora a um só tempo da condição judaica, do imigrante e da individualidade atropelada pelo coletivo. Aqui o autor encontrou aquilo pelo que um escritor procura a vida toda: uma criação simbólica original que passa a ser adotada até mesmo fora da obra como referência para o que a imagem queria retratar. Mais de um amigo judeu com quem conversei ao longo da vida enfatizava o quanto esta metáfora do Centauro como ser híbrido de duas espécies era também um retrato da condição íntima do judeu imigrante ou descendente.
5. A Estranha Nação de Rafael Mendes (L&PM, 1983)
Talvez o mais ambicioso romance da primeira fase de Scliar tanto em amplitude temporal (a primeira narrativa longa em que Scliar tece uma história que se desdobra dos tempos bíblicos até o século XX) quanto temática (essa longa trajetória é, basicamente, uma condensação da visão de Scliar para a identidade judaica, um povo perplexo, devoto a um Deus caprichoso que parece mais interessado em puni-lo do que amá-lo). O livro traça uma linha imaginária familiar que vai de Jonas, o profeta relutante que, ao desobedecer as ordens de Deus, acaba jogado ao mar e engolido por uma baleia, passando pelas andanças de Moshe ben Maimon, filósofo, estudioso das escrituras e médico espanhol nascido no século 12 em Córdoba, até o Rafael Mendes do título (Mendes aqui como uma corruptela de Maimônides ao longo dos séculos, veja), um médico residente em Porto Alegre que, antes jovem estudante cheio de sonhos bem-intencionados, vê-se transtornado na meia idade pela incapacidade de se comunicar com a mulher e com a filha, que se juntou a uma seita nova Era que tenta reconstituir os ensinamentos dos Essênios (um grupo de dissidentes judaicos messiânicos do segundo século antes de Cristo, e que também já haviam aparecido no início do livro). Talvez por abarcar tanta coisa, como a identidade judaica, as perseguições à “estranha nação”, corrupção, fraqueza humana, religião e fanatismo, a obra tenha uma certa impressão tumultuada que dificulte sua apreciação por completo.
6. Contos Reunidos (Companhia das Letras, 1995)
Nesta abrangente coletânea, Scliar reúne quase toda sua produção contística até então — o que inclui seus melhores trabalhos no gênero, que lhe valeram papel de destaque no cenário nacional, como A Balada do Falso Messias, Pausa, Uma Casa, Lavínia, Cego e Amigo Gedeão à Beira da Estrada e outros. O trabalho do Scliar contista tinha algumas especificidades que diferenciavam suas narrativas breves de seus romances. Se nos textos mais longos Scliar transformava repetições de estruturas e de motes em elementos de humor, nos contos ele tinha como influência declarada Kafka e suas histórias concisas cheias de significado, que transformam narrativas curtas — algumas curtíssimas — em parábolas da condição humana. Ao reunir as narrativas para a antologia, Scliar não apenas agrupou seus livros em ordem cronológica, preferiu reordenar o conjunto juntando na mesma seção contos que mostram certa afinidade conceitual ou temática.
7. A Mulher que Escreveu a Bíblia (Companhia das Letras, 1999)
Primeiro livro do que Scliar chamou de sua “trilogia de temática bíblica”. É uma história inspirada pelo ensaio O Livro de J., obra de 1992 na qual o crítico Harold Bloom postulava que os escritos mais antigos da Bíblia teriam sido escritos por uma mulher, a “Javista” (a criadora do “personagem” literário Javé – sim, mesmo os ateus reconhecem que, como personagem literário, Deus existe, como eu já coloquei neste texto). Scliar imagina que mulher seria essa: culta e ilustrada, a desafortunada concubina mais feia do harém do rei Salomão, evitada ao máximo pelo rei, que demora a visitá-la, dedica-se a escrever, a pedido do próprio Salomão, os livros que formarão a base da Torá, o coração do Velho Testamento. Dotada de inteligência tão notável quanto sua feiura, a mulher, concubina de relações não consumadas com o rei de Israel, é consumida por pensamentos lascivos e não consegue refrear uma linguagem sem meias medidas. Foi um livro no qual Scliar lançou mão pela primeira vez com mais afinco de um procedimento que repetiria em outras reinvenções bíblicas: o transplante de uma linguagem e uma mentalidade contemporâneas para os tempos bíblicos, fazendo desse choque a base do estranhamento primário produzido pelo romance.
8. Os Vendilhões do Templo (Companhia das Letras, 2006)
Mais uma volta de Scliar ao mundo bíblico, desta vez em um texto estruturado em três partes: na primeira, o autor reconta o episódio em que Jesus expulsa os vendilhões do templo pela ótica de um deles, uma espécie de protocapitalista com projetos grandiosos para revolucionar o comércio de pombos na entrada do Templo de Jerusalém. A história ecoa nas duas partes seguintes, uma passada no período missioneiro do Estado e outra na contemporaneidade, numa cidade do interior pela primeira vez governada por uma administração de esquerda. O protagonista desta terceira seção lida com um episódio dramático no passado relacionado a uma apresentação de teatro de escola, uma versão justamente da história dos “vendilhões do Templo” expulsos por Jesus.
9. Manual da Paixão Solitária (Companhia das Letras, 2008)
A primeira vez que ouvi Scliar comentar sobre esse livro foi em uma entrevista para mim no início de 2003. Naquela época, a obra chegou a ser anunciada para outubro daquele ano, com o título de O Irmão de Onã, na coleção erótica que a Companhia das Letras estava pondo em circulação, abrindo a série com Diário de um Fescenino, de Rubem Fonseca. Quando Scliar voltou a comentar que o livro estava para sair, numa conversa no bar da redação, eu já havia até me esquecido dele. De acordo com o autor, uma primeira versão do livro praticamente já escrita foi jogada no lixo porque ele percebeu, em certo momento, que estava contando a história por um ponto de vista errado. Trocou de narrador e concluiu este livro com o qual foi agraciado com os Jabutis de Livro do Ano 2009 na categoria ficção e Melhor Romance. Encerrando sua trilogia bíblica, Scliar reconta a história do irmão caçula da família de Onã — aquele mesmo, que deu origem à palavra “onanismo” para não engravidar a mulher de seu irmão mais velho (quando, tecnicamente, Onã praticava não “o prazer solitário”, mas uma variedade ancestral de coitus interruptus). Com humor, Scliar estabelece que o verdadeiro “onanista” da família era o caçula, o “irmão de Onã” — embora seja um dos livros de Scliar com o qual menos consegui me acostumar devido ao engenho formal de apresentar a história pelo ponto de vista de dois palestrantes de um congresso de estudos bíblicos..
10. Eu Vos Abraço, Milhões (Companhia das Letras, 2010)
Scliar volta ao passado do Brasil neste romance sobre a Revolução de 1930 no qual reconstrói a utopia comunista no Brasil. Um jovem filho de um capataz em uma estância missioneira, inflamado pelo sonho socialista incutido nele por um amigo, muda-se para o Rio em 1929 tentando encontrar um dos líderes do Partido Comunista para oferecer seus serviços à causa da luta revolucionária. O dirigente, entretanto, é um homem inconstante e difícil de ser encontrado, e enquanto isso o rapaz vai se deixando ficar. Nesse processo, testemunha os efeitos do Crash da bolsa de Nova York, emprega-se como operário na construção do Cristo Redentor e vê a revolução liderada por Getúlio Vargas tomar as ruas de então Capital Federal. Como inadvertida última obra de ficção, representa uma síntese do Scliar romancista da segunda fase e seu modo peculiar de incorporar a história em seus livros.