Era 1984 na capital dos gaúchos. Os jovens, cansados da opressão que se estabeleceu no Brasil desde 1964, criam novos ares estéticos 20 anos depois. Apesar de ainda haver “censura”, pois era necessário passar pela Polícia Federal as obras artísticas para a execução pública, também vivíamos o sonho da democracia com as Diretas Já. Houve uma reação cultural que questionava a ordem vigente e tornava aqueles recentes anos de chumbo em dias mais criativos, coloridos e leves. No cinema, estreia o longa-metragem Verdes Anos, no teatro temos o Anima Sonho e os Tangos & Tragédias. Na música, Nei Lisboa lança Noves Fora e começa a germinar o termo rock gaúcho. Também inaugura nesse mesmo ano o teatro bar Porto de Elis.
Em abril de 1984, acontece a primeira exibição do longa em 35mm Verdes Anos, com a direção de Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil. Estão ali os encontros, os amores, as drogas e um pouco do sonho hippie. O filme foi um sucesso de bilheteria e chegou a todos os cinemas do interior do RS. Também revelou atores como Marcos Breda, Werner Schünemann e Luciene Adami. Paralelamente, Nei Lisboa lança o clássico álbum em vinil Noves Fora, com a irônica música sobre uma doença sexualmente transmissível – Mônica Tricomônica, a balada sobre liberdade Sempre Pinta, o bolero rock Lomba do Sabão e o super clássico Verdes Anos. Muitas dessas canções viraram hinos da malucada gaúcha. Era tempo de empoderamento juvenil.
No teatro de bonecos temos o Anima Sonho. Criado por Ubiratan e Tiarajú Gomes, o espetáculo Bonecrônicas trouxe pequenas esquetes e números musicais. Aparecem os bonecos de Raul Seixas e dos gaúchos Renato Borguetti e Berenice Azambuja. Em 2024, nos seus 40 anos, o grupo foi homenageado na exposição O Encontro da Marionete com o Sonho no Museu da UFRGS. Tiaraju faleceu em 2005 e o espetáculo segue com Cacá Sena no seu lugar. Já os Tangos & Tragédias começaram no pequeno bar do Instituto dos Arquitetos do Brasil/IAB, misturavam música com teatro. A dupla Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky permaneceu junta por 20 anos. Acordeon, violino e piano davam a sonoridade para letras irônicas dos dois personagens fugitivos da Sbornia. Nico faleceu em 2014 e o espetáculo foi finalizado.
Enquanto isso, na música, temos os punks de Os Replicantes, que fazem seu primeiro show oficial no bar Ocidente em maio de 1984. A banda permanece na ativa até hoje e o projeto de 40 anos da banda incluiu exposição no Museu do Trabalho, documentário, lançamento em vinil e shows em Porto Alegre e São Paulo. Outras bandas de rock aparecem em 1984, como os irreverentes do Defalla, o rock new wave dos Os Eles, o rock juvenil do TNT e a Bandaliera, que tem como parceiro o músico hippie rock Fuguetti Luz. Mas foi em dezembro do mesmo ano que aconteceu o lançamento do LP Rock Garagem, que reuniu dez bandas, com estilos variados, do rock ao metal; entre elas estão Taranatiriça, Urubu Rei, Garotos da Rua, Moreirinha e seus Suspiram Blues, Astaroth e Leviaethan. Neste momento, começa a nascer o termo rock gaúcho e torna-se uma marca na geografia musical do Brasil.
Mas para existir essa cena era preciso espaços para tocar e se apresentar, então paralelamente à rádio Ipanema e ao Bar Ocidente, aparece o teatro bar Porto de Elis. O show de inauguração foi com a cantora Luciana Costa. O local foi palco para as primeiras apresentações de Adriana Calcanhoto. Era um espaço multicultural para apresentações de teatro, música e performance. Tinha lugar para toda a diversidade estética e de gênero. Havia travestis, gays, a turma da MPG e da MPB, roqueiros; todos aprendendo a conviver em harmonia com a anarquia do local. O bar, com essa primeira administração, fechou em 1994.
Toda essa produção se estabelece de forma alternativa e independente. Era preciso quebrar o tédio e aprender fazendo. Também se estava marcando um território jovem efervescente. O ano de 1984 foi para Porto Alegre uma revolução cultural, mesmo que esses artistas e produtores não tivessem consciência da força produtiva e estética daquele momento. Passados 40 anos, é possível afirmar que essas produções culturais influenciaram os modos de ser e sentir e ajudaram a formar as identidades de duas gerações. 1984 é o ano que ainda não acabou!
Ana Paola de Oliveira é jornalista, produtora musical, mestre em comunicação e especialista em direito autoral. Produtora executiva, assessora de imprensa e curadora. Produz fonogramas e licenciamento de músicas para audiovisuais. Foi professora da ESPM nos cursos de jornalismo e publicidade e propaganda. Repórter e crítica musical do Correio do Povo. Trabalhou como diretora de produção e assessora de imprensa na Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da Prefeitura Municipal de Porto Alegre na Usina do Gasômetro.
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Foto da Capa: Filme Verdes Anos / Divulgação