Segunda-feira, 22 de abril de abril de 2024, deixo de lado a comemoração dos 524 anos do descobrimento do Brasil pelos portugueses e lembro a segunda-feira 22 de abril de 1985. O primeiro dia útil de uma redescoberta de todos os habitantes da velha Terra de Santa Cruz: a democracia.
Na véspera, domingo, 21 de abril de 1985, às 10 e pouco da noite, o jornalista Antônio Britto, futuro deputado constituinte e governador do Rio Grande do Sul, então porta voz da Presidência República, comunicara o falecimento do presidente eleito Tancredo Neves, hospitalizado desde a véspera da posse, em 14 de março, acometido por uma diverticulite que o levaria à morte.
A partir daquele momento, começava, efetivamente, o governo de José Sarney, vice de Tancredo, o primeiro civil a ocupar o gabinete do quarto andar do Palácio do Planalto desde 1964. Lembrando um pouco do que houve de 1985 para cá, vejo que, por mais que tentem, os reacionários não conseguirão puxar o Brasil para trás na nossa caminhada em direção a mais igualdade, mais tolerância e, enfim, mais progresso.
Olhando o retrovisor da história – esse que não nos deixa repetir as barbeiragens do passado –, mas sem descuidar do que vem pela frente, a gente vê que o Brasil e todos nós andamos meio como caranguejos: de lado, mas avançando.
O governo Sarney transcorreu em regular tranquilidade. Tivemos uma ameaça de crise. Até meio parecida – visualmente, claro – com os atos de 8 de janeiro de 23…
Lembro: em fevereiro de 1986, fora lançado o Plano Cruzado, pacote econômico cuja principal marca era o congelamento de preços, os mais importantes os dos alimentos. Tivemos até os fiscais do Sarney que vigiavam as gôndolas dos supermercados para impedir aumentos de preços.
A popularidade do governo e do então PMDB era tamanha que o partido elegeu 22 governadores e fez maioria absoluta no Congresso Nacional nas eleições que aconteceram em 15 de novembro, isso sem falar nas vitórias em assembleias legislativas estaduais.
Mas o Cruzado não se sustentava, começou uma escassez produtos no mercado, os preços dos combustíveis aumentaram muito e a inflação depois de grande queda – caíra de quase 13% ao mês na época do lançamento para pouco mais de 1% em outubro – disparou. Aí, só seis dias depois da eleição, o governo editou o Plano Cruzado 2 aumentando impostos, alterando a fórmula de cálculo da inflação e desvalorizando a moeda.
Primeiro susto da democracia
E veio o grande susto do começo da redemocratização: o episódio que ficou conhecido como o Badernaço de Brasília, no dia 27 de novembro de 1986 (quem não viu, pode ver, e quem viu e quer rever pode ver o filme sobre o quebra-quebra aqui).
A CUT convocou para aquele dia um protesto contra o Plano Cruzado 2. Uma passeata, liderada por um carro de som, saiu, no começo da tarde, da Estação Rodoviária do Plano Piloto em direção à Praça dos Três Poderes. Mais especificamente, ao prédio do Congresso Nacional. As lideranças queriam entregar cartas aos congressistas e ao então ministro da Fazenda, Dilson Funaro.
Já no comecinho da Esplanada dos Ministérios havia uma barreira policial. Mas a passeata passou… o caldo começou a engrossar na chegada ao Congresso. Outra barreira impediu a passagem dos manifestantes. Então, um grupo de deputados e senadores se juntou ao povo. E tomaram o rumo do Ministério da Fazenda. Nenhum documento foi entregue. Dispersado pela polícia, o grupo voltou em direção à Rodoviária e, de repente, a pressão explodiu.
Não adiantou o carro de som anunciar o fim da manifestação. Um enorme tumulto tomou conta daquele pedaço de Brasília. Mais de 30 carros da polícia e ônibus do Exército foram depredados, incendiados e deixados de rodas para cima. Alguns foram presos. E ficamos assim.
A diferença entre o Badernaço de 1996 e o atos de 2023? Lá, apesar do recente fim de ditadura, ninguém classificou o acontecimento como coisa de comunista, ou provocação para a volta dos militares ao poder. Tínhamos visto o povo reagindo à proibição de levar suas reivindicações ao governo. Em 2023, misturaram-se golpistas conhecidos como cidadãos, uns enganados, muitos mal-intencionados para derrubar o governo recém-empossado em ataques insanos às sedes dos Poderes.
Naquela quinta-feira, 27 de novembro de 1986, a democracia gritou que tinha vindo para ficar. O governo Sarney seguiu andando, meio de lado…mas avançando.
Em 87, veio a Assembleia Constituinte e com ela a volta das eleições diretas para Presidente da República e a plena redemocratização do país. Em 1989, voltamos a lembrar que na democracia o povo pode tudo. Até ser enganado…
Numa eleição com as candidaturas de Ulisses Guimarães, Leonel Brizola, Mário Covas, Luiz Inácio Lula da Silva, todos da linha de frente da luta contra a ditadura, o ganhador foi Fernando Collor, ex-governador de Alagoas que se apresentou aos eleitores como um implacável Caçador de Marajás.
Deu no que todos lembramos. O caçador foi cassado. Impichado em 1992. Por corrupção. Os recalcitrantes admiradores de ditaduras chegaram a ensaiar a cantilena de sempre: era pra isso que queriam eleição direta? Foi um passo para o lado. Mas continuamos avançando.
Itamar Franco, vice de Collor, levou o governo até o final e encaminhou o fim do grande mal brasileiro dos anos 1980/1990: a velha e impiedosa inflação. Itamar levou Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda. Juntaram um grupo de economistas e nasceu o Plano de Real. Com um Real, dava comprar um quilo de frango. Um Real valia um Dólar… Não podia dar outra, não é mesmo? Apesar da triste lembrança dos planos Cruzado, o Plano Real se consolidou e garantiu duas vitórias da chapa Fernando Henrique /Marco Maciel sobre a chapa de Lula em primeiro tuno em 1994 e 1998.
O Brasil queria mais. Em 2002 e 2006, os brasileiros levaram Lula ao Palácio do Planalto. Em 2010, levaram a candidata indicada por ele, Dilma Roussef. O Brasil tinha sua primeira Presidenta, como Dilma gostava de ser chamada. Em 2014, Dilma foi reeleita. Pouco afeita às negociações políticas, a presidente não conseguiu reagir à articulação das forças de direita e acabou derrubada por um processo de impeachment.
Aí, é o que se vê desde lá. Com a esquerda desarticulada, enfraquecida pelas investigações de corrupção e sem se mobilizar efetivamente para o uso das redes sociais na comunicação com a sociedade, a direita retrógrada e golpista foi crescendo, entendeu melhor como usar – para o mal – os novos meios de comunicação e garantiu, em 2018, a eleição de um obscuro ex-capitão do Exército, deputado federal por décadas, só destacado por manifestações misóginas, homofóbicas e golpistas.
Como eu lembrei ali em cima, na democracia o povo pode tudo, até ser enganado. Só não repete o engano. Foi enganado em 1989, corrigiu em 1994. Errou em 2018, corrigiu em 2022.
O Brasil bem podia aproveitar esta segunda, 22 de abril de 2024, para começar um movimento de neutralização dessa direita que quer nos puxar para trás. Um bom primeiro passo é mostrar a esses que espalham fake news, discursos de ódio e reclamam de falta de liberdade à luz do dia, mas tramam contra a democracia no escuro do submundo da política, que a democracia renascida em 1985 já veio vacinada contra o vírus do atraso, da intolerância e de qualquer ditadura.
Em outubro tem eleição. Ainda dá tempo para os verdadeiros democratas se organizarem para enfrentar essa extrema direita e mostrar que ela não é do tamanho que pensa ter, nem do tamanho que alguns temem que ela tenha. Afinal, não deve ser difícil enfrentar uma facção liderada por um inelegível. É só ter em conta que o povo não é bobo.
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