Voltando para casa no horário do rush numa avenida movimentada de Porto Alegre na semana do meu 46º aniversário, com trânsito lento, anoitecendo e chuva fina, exercito a paciência e o modo aleatório do meu Spotify, quando me deparo com um carro de autoescola bem lento a minha frente, na faixa central de um total de três, abarrotadas.
Na hora de arrancar, o carro da ou do aprendiz apaga. As demais faixas lentas, mas fluindo. Eu, parada. Sinto um misto de raiva, azar por não ter escolhido nenhuma das outras duas faixas e uma empatia instantânea misturada com compaixão pela pessoa naquele volante. Lembrei da primeira vez que o instrutor me levou para a avenida Bento Gonçalves, nesse mesmo horário crítico do dia. Eu tremia naquele volante na avenida frenética e apressada.
A questão carro, direção e carteira de habilitação foi transformadora na minha vida. Por motivos depois muito bem trabalhados em meu processo de análise, reprovei no exame psicotécnico em minha primeira tentativa, tamanho meu nervosismo e expectativa com esse marco no desenvolvimento que é ter a primeira habilitação. Com 18 anos, cursando orgulhosamente meu primeiro semestre do curso de Psicologia, reprovei justamente no psicotécnico. Quis desistir, comprar ilegalmente minha habilitação (obrigada por esse limite, pai), até que, aos trancos e barrancos, consegui ser aprovada pelas vias legais.
Lembro de uma das aulas da autoescola em que, transitando em uma avenida com duplo sentido, perguntei ao instrutor, insegura:
– Como é que a gente sabe que o carro vindo no sentido contrário não vai invadir minha pista e vir em minha direção?
Ele, sábio e direto, respondeu:
– A gente não sabe.
A gente não sabe. Nada. Nem no carro e nem na vida. Cada vez mais entendo o trânsito como uma metáfora bastante fiel desta última. Desigualdades e injustiças fazem com que uns tenham carros mais fortes e potentes que outros, muitas vezes nem sendo bons motoristas que façam jus a tais motores. Pessoas dirigem imprudente e egoisticamente, matam ou põem outras em risco. Alguns, inseguros, têm medo de acelerar e avançar mesmo com uma avenida de domingo à sua frente. Outros correm demais e nem olham a paisagem. Todos deveriam prestar atenção à sinalização e submeter-se às leis caso cometessem uma infração. Saber a hora de dar a preferência, a hora de respeitar pedestres.
Voltando à minha ingrata posição atrás do carro de autoescola, pensei esperançosamente que aquele ou aquela aprendiz poderia receber, como recebeu de mim, tolerância e compreensão ao apagar o carro de todos que o(a) rodeavam porque ele ou ela estavam avisando em letras garrafais: AUTOESCOLA. Um aviso de modéstia, um aviso que admite a condição de inexperiência e pede por cuidado e um pouco de zelo. E (quase) todo mundo consegue se conectar com esse momento e ser mais empático, nem que seja um pouco.
Pensei que a gente podia usar esse recurso na vida. Da mesma forma que avisamos nos carros ou nas caixas de papelão em fretes de mudança. Frágil. Sou frágil, estou aprendendo, calma comigo. Mas não andamos por aí com avisos dessa natureza. Em tempos onde ninguém mais enxerga muito o outro, creio que viria a calhar.
Acho que para os meus 46 anos que se aprochegam meio implacáveis vou vestir uma faixa amarela ao redor do meu corpo com os dizeres “autoescola”, para que quem passe por mim tenha paciência, de longe me identifique ainda aprendiz, alguém que precisa andar devagar porque ainda quer muito dessa viagem, mas que pode eventualmente apagar ou afogar seu motor, mudar de faixa sem lembrar de sinalizar.
Quero trânsito de iniciante até o fim dos meus dias, quero acreditar nas leis, reaprender sinalizações, talvez não dar mais tanta atenção para multas, andar mais devagar, quero tirar minha licença para trafegar.
Os pontos na carteira? Esses, com sorte, só vão se acumular.
Foto da Capa: Freepik
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