Ok, breve resumo pra quem não acompanhou na semana passada: fiz 50 anos este mês, então decidi fazer uma coluna com 50 livros cujo impacto moldou minha personalidade, minha visão de mundo, minha estética etc. A coluna ficou longa, dividi o texto em dois. A primeira parte saiu semana passada, leia aqui.
Aliás, agradeço a quem se manifestou sobre o texto, inclusive pelo fato de a maioria dos retornos ter sido positiva. Um dos comentários expressava certa perplexidade por a lista: 1) não incluir leituras de infância e livros infantis e 2) se estender até os anos da faculdade e além, como se essa formação tivesse durado para sempre e eu fosse meio lerdo em descobrir as coisas. No primeiro caso, acho que isso se deve a eu ter passado a infância lendo mais gibis do que livros propriamente ditos (nesse sentido, o impacto de Ziraldo, por exemplo, teve mais a ver com os quadrinhos do Pererê, que estavam sendo reeditados na época, do que com O menino maluquinho, que eu só fui ler bem mais tarde. Também fui conhecer alguns livros por suas adaptações em HQ antes de lê-los, como O morro dos ventos uivantes, na versão de Rick Geary para a série Classics Ilustrated).
Quanto ao segundo comentário, sim, as duas coisas. Eu realmente acho que se você está formado além de qualquer capacidade de mudança ou renovação, bom… você morreu, basicamente. E não fiz a lista pra pagar de intelectual, não tive uma formação cultural desde o berço, sou de uma família trabalhadora de classe média baixa, o que sempre tive, sim, foi curiosidade. Logo, a lista prova que os livros, olha só, ainda me formam. E se nada mais na literatura continuasse despertando minha curiosidade nesta fase da vida, bom, aí realmente talvez eu devesse ficar jogando videogame e ir fazer outra coisa.
Outro ponto: tentei fazer a lista em termos cronológicos, mas é claro que me perdi na montagem. O texto da semana passada encerrava com Quase memória, do Cony, que eu li já formado, em 1997, entre outros motivos porque achei que seria um belo arremate para a primeira parte, dado o caráter afetivo e formativo que teve para mim. Mas havia outros livros que deveriam ter aparecido antes e que aparecerão agora. Esta lista segue a memória, errática em seus vaivéns. Ah, sim, a referência de edição e tradução é não das versões mais recentes, mas da versão específica que li (quando me lembrei ou encontrei a informação).
Boa leitura.
26 – Cães da província, de Luiz Antonio de Assis Brasil – Outra leitura que eu devo à já mencionada lista obrigatória de livros do Vestibular da UFSM 1992, pela qual também li Agosto (gostei muito) e Verão no aquário (achei meio chato). A parte mais engraçada dessa história, aliás, não contei: eu li todos os livros da lista ao longo de 1991. E quando chegou a hora de fazer vestibular, no início de 1992, prestei o concurso em Porto Alegre, para o qual a lista não valia, então o que me foi útil dessa empreitada foi apenas o prazer da leitura – como, aliás, deveria ser sempre, acho. Mas Cães da província: me apresentou de uma única vez duas coisas que eu desconhecia e que eram, fui saber mais tarde, parte da mitologia própria da Capital: a figura de Qorpo Santo como um protótipo desse artista à margem que a cena de Porto Alegre tem o hábito de cultuar e o famoso “caso do linguiceiro da Rua do Arvoredo”. A forma meticulosa como Assis Brasil conduzia as duas linhas e as fazia coincidir, o retrato de Qorpo Santo como uma espécie de diabo cujos olhos febris desestabiliza o juiz que analisa seu processo, sua melancolia e sua tristeza. Foi a primeira obra de Assis Brasil que li, e me levaria a, nos anos seguintes, procurar quase todas as outras.
27 – Laranja mecânica, de William Burroughs – Outra das leituras de adolescência que faltaram na semana passada. Está associada a uma história engraçada: eu já havia ouvido falar do filme de mesmo nome, mas minha mãe controlava de modo ferrenho o que víamos na TV, então nunca tinha assistido. Mas aos 16 anos descobri que a história também era um livro, que peguei na Biblioteca Pública de São Gabriel e li sem problemas porque meus pais não enchiam o saco com as leituras (desde que fossem livros. Gibis, dependendo da capa, davam problema). O romance me impactou de tal modo que por anos usei o dialeto Nadsat falado por Alex e seus “drugues” como piada interna. Sim, eu sei que ter uma piada interna que é piada só para você é patético, mas acho que é essa a questão. Ah, o livro: basicamente, a intervenção repressiva social para tolher a violência juvenil criadas pela forma como a própria sociedade cria seus jovens prova-se uma violência tão grande quanto a delinquência do protagonista. (Artenova. Tradução de Nelson Dantas)
28 – A cidade e as serras, de Eça de Queirós – Qualquer livro do Eça é um acontecimento feliz, mas neste aqui gosto particularmente de como ele encapsula uma ideia que está presente na maior parte das sociedades europeias (e por extensão, foi reproduzida na formação de suas colônias, inclusive aqui no Brasil): um certo divórcio de visões de mundo entre as metrópoles e o bucolismo das comunidades do campo – expresso na afetação algo ridícula com que vemos pela primeira vez seu protagonista, Jacinto de Tormes. Também está posta no livro a afetação estrangeirista da elite portuguesa apaixonada por Paris, algo que eu, ao ler o livro, ali pelos 17, associei, talvez sem razão, com a caricata Odete Roitman da novela das 8 (aliás, comecei a ler o Eça nessa época porque estava passando a adaptação de O primo Basílio e a gente não via lá em casa porque, como comentei no parágrafo anterior, minha mãe controlava com mão de ferro a programação da TV e viu logo de cara que era uma série de “gente pelada).
29 – Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar. Era verão, eu passava férias em São Gabriel e meu irmão pegou hepatite e precisou ficar internado na Santa Casa. Essa é a circunstância pessoal que sempre retorna quando reabro este livro que, para mim, mostrava uma forma totalmente nova de lidar com um passado já tão tratado e maltratado como era o da antiguidade greco-romana (pela qual eu já era apaixonado). Como havia uma criança recém-nascida na casa de minha mãe (outro irmão), eu fiquei no hospital com o internado, e terminei lá a leitura desse livro que havia emprestado da Biblioteca da Fabico para só devolver depois das férias. Até hoje a memória desta leitura meio que atropela as informações que fui buscar depois sobre o verdadeiro imperador – que, na realidade, não era o protointelectual fascinante que a autora pinta neste livro. (Nova Fronteira. Tradução: Martha Calderaro)
30 – A sangue frio, de Truman Capote – É impossível passar pela faculdade de jornalismo sem, em algum momento, ouvir falar desse livro, um marco do chamado Jornalismo Literário (o próprio Capote, que insistia não ser jornalista de ofício, preferia usar o termo “romance de não ficção”). Após ler no jornal sobre um crime real, o assassinato de uma família em uma comunidade rural do Kansas, Capote viajou ao lugar com sua amiga Harper Lee e passou anos dedicado a reconstituir o episódio usando recursos literários (alguém poderia dizer que, com isso, antecipou a febre atual do “true crime”, o que até seria verdade, se metade do pessoal que faz podcasts e vídeos no YouTube sobre isso soubesse escrever). Eu já havia lido antes sua coletânea de textos mais curtos “Os cães ladram”, mas foi este texto (devorado em poucos dias no outono cálido de 1996) a verdadeira revelação. Posso dizer que minha carreira como repórter foi sempre pautada por um insight que tive lendo este livro e, na sequência, o artigo O jornalismo literário, de Tom Wolfe. Muitos acusam o jornalismo literário de invencionice, não entro nesse mérito. Apenas percebi ali que o repórter sempre precisará estar o máximo possível aberto e atento ao que vê e ouve, para capturar o máximo possível de detalhes, porque serão eles que darão cor, calor e sabor a um texto jornalístico (Editora Abril. Tradução de Ivan Lessa).
31 – A dor, de Marguerite Duras – Peguei o livro na biblioteca Central da UFRGS para ler enquanto esperava, sentado num corredor, a interminável burocracia para a primeira fase da matrícula do segundo semestre da faculdade, início de 1993. E a espera passou voando porque este é um dos grandes textos sobre a incerteza em tempos de exceção já escritos em qualquer idioma. Não me lembro especificamente o que me chamou a atenção neste livro em particular, mas pode ter tido a ver com o nome da autora estar outra vez em ampla circulação pela estreia nos cinemas da adaptação de O amante. A base do livro é um diário que a autora não lembra de haver escrito. Em 1944, Duras participava da resistência francesa contra a ocupação, ao lado do marido Robert Anthelme, que foi preso pelos nazistas. O livro narra três momentos de luto e desespero no fio da navalha: os meses após a libertação, quando os prisioneiros estão sendo resgatados mas o caos das informações prolonga a incerteza; os meses antes disso, quando, ao tentar obter informações, Duras virou alvo da atenção insistente de um policial colaboracionista, e a dolorosa adaptação ao retorno de Anthelme e dos traumas indizíveis que ele traz consigo. (Nova Fronteira. Tradução de Vera Adami).
32 – Nostromo, de Joseph Conrad – Sim, o Coração das trevas é uma obra-prima, e Tufão é, a seu modo, divertido, mas provavelmente o livro de Conrad que levo comigo até hoje é este tijolo. Na fictícia república de Costaguana, na nossa América do Sul, um caldeirão político opõe uma ditadura militar instalada na Capital e patrocinada pelos plutocratas da rentável mina de prata cuja exploração é a base econômica do lugar e uma revolução que tenta obter a independência de uma das províncias da nação, Sulaco. No meio dessa conflagração surge a figura fascinante do italiano Gian’Battista Fidanza, o “Nostromo”, que aluga seus serviços para o combate aos rebeldes (“Nostro Uomo” é como o chamam os governistas, daí o apelido e o nome do livro) enquanto planeja o roubo de uma carga de prata. A ambição e a riqueza da narrativa, mesclando aventura e uma aguda visão política, são marcantes – embora haja, como talvez não poderia deixar de haver, uma incômoda visão europeia preconceituosa sobre a paisagem humana latino-americana. Curiosidade pessoal: um dos primeiros livros desta lista que eu comprei, em 1997, acho, quando estavam saindo semanalmente os livros da Coleção Mestres da Literatura, vendidos em bancas de jornal por menos de 10 pilas. Edições baratas, caprichadíssimas, e com encadernação quase indestrutível – tenho meu exemplar até hoje. (Record/Altaya, Tradução de Donaldson Garschagen)
33 – Millôr Definitivo: a Bíblia do Caos, de Millôr Fernandes – Coloco aqui esta coletânea abrangente lançada em 1994 como forma de pagar tributo a um autor que eu já conhecia desde muito antes. Ainda quando vivia em São Gabriel, para mim era ponto de honra espiar sempre que pudesse na revistaria da cidade (o que me valia olhares de fúria do dono bigodudo) a coluna de Millôr nas últimas páginas da falecida Istoé. Sua verve, sua comicidade abusada, sua erudição “do contra” me fascinavam. Millôr, aparentemente, hoje em dia anda meio esquecido pelos jovens, mas foi referência para mais de uma geração de jornalistas, incluindo a minha. Mais sobre ele aqui.
34 – Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro – Não sei hoje, mas na minha geração era comum amigos dizerem que músicas serviam como “madeleines”, transportando-os, já aos primeiros acordes, para uma memória do passado. Podem acreditar ou não, mas para mim são os livros que desempenham essa função. Ao pensar em um livro, a evocação de algum momento ou circunstância associados à sua leitura é imediata (esse é, aliás, o motivo deste texto, a bem dizer). Este aqui, por exemplo, eu estava lendo em 1997, por aí, época em que comecei como repórter de polícia na Zero Hora, no banco traseiro do carro enquanto nossa equipe formada por mim, um motora e um fotógrafo se deslocava até Morungava, distrito de Gravataí, para fazer uma matéria sobre um crime. Não me lembro mais do crime nem da matéria, mas me lembro que nessa manhã ensolarada em particular li o engraçadíssimo capítulo no qual o narrador faz digressões sobre a compulsão de desafio à morte existente na alma dos comedores de “escaldado de Baiacu”: Ah, sim, lembro também que meu amigo Júlio Cordeiro, fotógrafo naquela jornada, me pagou uma lata de Coca Cola num boteco no qual paramos na volta. Sobre o livro, um dos meus favoritos, não falo mais porque já dissertei longamente aqui mesmo da Sler.
35 – O Beijo e outras histórias, de Anton Tchekhov – Leitores da primeira parte chamaram a atenção para o grande número de histórias envolvendo obras retiradas de bibliotecas. De fato, durante muito da minha juventude o dinheiro para livros era curto. Mas as bibliotecas estavam lá, e sou grato a todas elas: a pública de São Gabriel, a dos colégios em que estudei na mesma cidade, a pública de Porto Alegre, a do Instituto de Arte, a da Fabico, a Central da UFRGS, a da Letras no Campus do Vale etc. Sabendo dessas duas circunstâncias, minha voracidade de leitor e minha pindaíba de estudante, certo dia de 1997 dona Lore, tia da minha namorada de então, me chamou e abriu um armário em seu apartamento na João Pessoa. E nas prateleiras de cima havia uma porrada de livros antigos muito bem conservados, alguns editados nos tempos áureos da Globo, que aquela senhora tinha desde a juventude e que passou a me emprestar, um por semana, como uma biblioteca sem necessidade de cadastro – e sem taxa por atraso. O primeiro foi este, uma coletânea de contos do mestre russo do gênero que me tornaram seu fã incondicional. Nesta edição, especificamente, destaco o conto título, Vierótchka e o clássico Enfermaria Nº 6 – que me lembro de ler na sala de espera do Hospital Independência enquanto esperava para doar sangue, uma experiência bizarramente sinestésica. (Editora Boa Leitura. Tradução de Boris Schnaiderman).
36 – Hollywood, de Charles Bukowski – Sabe, a leitura pode até ser, com trocadilho e tudo, um prazer solitário, mas há uma alegria própria em estar em um ambiente em que ela possa ser compartilhada e discutida. É assim que descobertas são feitas. Este foi o primeiro livro que li de Bukowski, autor que mais tarde se tornaria referencial por um tempo da minha juventude. E só comecei a lê-lo porque me foi recomendado numa sala de aula pelo meu então colega de faculdade Gustavo Mini, sim, o mesmo da seminal banda indie Walverdes. Basicamente, Bukowski transforma em romance a produção de Barfly, filme não muito bom que Barbet Schroeder fez após insistir para que o escritor fizesse o roteiro. O humor sarcástico e e a iconoclastia que não poupam nem o próprio autor são qualidades que até hoje aprecio na obra de Bukowski, mesmo com muito do que é apontado como problemático em sua obra. E aqui, essas características estão no auge (L&PM. Tradução de Marcos Santarrita).
37 – O Harlem é escuro, de Chester Himes – Falei no texto da semana passada sobre a revelação que foi descobrir Rubem Fonseca. Nos anos seguintes, li tudo o que ele havia publicado e decidi fazer minha monografia sobre onde Fonseca se situaria, como praticante brasileiro do policial, na tradição do gênero. O que me levou a ler muita coisa sobre o policial como estilo, o que uma hora acabou por me fazer encontrar Chester Himes e sua narrativa completamente original no contexto da literatura hard-boiled americana. Himes ambienta suas tramas no Harlem, investigadas por dois policiais negros, Jones Coveiro e Ed Caixão, sempre em xeque por representarem a polícia numa comunidade negra histórica e injustamente arrochada pelas forças da ordem. Coloquei aqui o primeiro que li, mas poderia ter sido qualquer outro da série (Brasiliense. Tradução de Alvaro Hattner)
38 – A primeira investigação de Maigret, de Georges Simenon – Falei que minha relação com os livros se deu muito durante uma época por fase inauguradas pela paixão de uma leitura recém-descoberta. Dostoievski inaugurou uma fase de russos, por exemplo. O ciclo de romances de Maigret, o detetive pesadão que só consegue desvendar um crime deixando-se tomar pela sua atmosfera, foi outra de minhas obsessões, por um tempo — eu pegava os livros na Biblioteca Central da UFRGS, próxima à Casa do Estudante, onde morava, e os lia muitas vezes no período de uma noite. Na época eu era mais meticuloso com a contabilidade de minhas leituras, e pelo que me lembro anotei a leitura de quase quatro dezenas de romances de Maigret — o que foi totalmente insuficiente para conhecer toda a saga do personagem, distribuída ao longo de 75 romances e um punhado de contos. Tenho meus favoritos, mas coloquei este aqui porque foi o primeiro que peguei na biblioteca, achando ter sido o primeiro publicado – na verdade, descobri mais tarde, este só saiu quase 20 anos depois do início da série (Nova Fronteira. Tradução de Áurea Weissenberg)
39 – Pedras de Calcutá, de Caio Fernando Abreu. Tirei este na Biblioteca Pública do Estado, levei para a pensão em que eu morava, um tugúrio meio deprimente na Independência, e fui hipnotizado para sempre. Muitos anos depois, a convite do professor André Barberena, da PUCRS, fui convidado a escrever um conto baseado em um objeto aleatório dos arquivos de Caio no Centro de Documentação Delfos, da universidade, para uma coletânea em homenagem ao escritor. Antes mesmo de saber qual o objeto, eu tinha certeza que escreveria algo parecido com isso que se lê neste trecho do conto finalizado (o nome da antologia é O que resta das coisas, e saiu pela Zouk, se alguém se interessar): “Na primeira história, curta, praticamente uma vinheta, um homem virava água. Água. E saía vazando pelas ruas de uma cidade transformada em rio. Na segunda, um grupo de se reunia em volta de uma fogueira, um grupo doente apodrecendo dia a dia e queimando tudo o que tinha na tentativa de se aquecer em uma realidade em que o sol se foi e em breve o único calor possível será obtido apenas quando um deles se jogar nas chamas com sua pele gretada e cheias de pústulas (…). . Já na primeira leitura eu sabia que Caio era para mim. E seria para sempre”.
40 – As jovens damas vermelhas cada vez mais belas, de Federic Fajardie – Sabe aquele livro que você leu numa época e num lugar que o tornaram extremamente significativo mas que parece ter sido um sonho porque ninguém mais ouviu falar? Pra mim é este aqui. Aos 20 anos, cheio de emoções borbulhantes e fervor esquerdista, li este romance numa viagem a Florianópolis para conhecer a família de uma namorada. Era um relato visceral e exaltado das ruínas do movimento de 1968 em Paris. A prosa não era brilhante como a de Eco ao abordar o mesmo tempo e lugar em O pêndulo de Foucault, mas havia ali uma raiva com a qual eu me conectava, raiva pelos “adesistas” de ocasião e pelos “deixa-disso” que assumiram o controle do legado do movimento assim que a poeira assentou. Era, também, uma história de amor desesperado numa época em que eu estava interessado nesse tipo de narrativa. Não sei o que acharia dele se o relesse hoje, estou citando de memória sem ter lido em 30 anos. Talvez seja melhor assim. (Scritta. Tradução de Eliana Aguiar)
41 – De fato e de ficção, de Gore Vidal – Pensando nesta lista, imaginei se deveria me restringir à ficção, mas aí me lembrei do óbvio, a lista é minha, então entra o que eu quiser. Logo, teria que entrar esta coletânea de ensaios do hoje meio esquecido Vidal, que era uma figura bastante discutida naqueles anos 1990 em que esse exemplar caiu na minha mão (numa das primeiras compras que fiz em um saldo da Feira do Livro). Vidal era na época um ficcionista prolífico que provocava marolas no discurso público a cada novo romance, mas graças a este livro o que sempre me agradou em seu trabalho foi sua não ficção, sua verve, sua erudição algo escandalosa, sua elegância ferina ao demolir seus adversários – que Paulo Francis imitava sem sucesso, como aliás imitava muita coisa. (Companhia das Letras. Tradução Heloísa Jahn)
42 – Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino – Outra obra, outra biblioteca, desta vez a do Centro Municipal de Cultura, aí por 1995, a algumas quadras da Fabico, onde eu estudava na época. Demorei a engrenar na leitura do rebuscado primeiro capítulo que parecia não ir nunca a lugar nenhum e ficar enrolando sobre as condições ideias de leitura da obra. Até a narrativa começar a se interromper e eu entender o propósito. Não tenho, vejo agora, uma predileção estrita por obras que sejam só “uma boa história” ou pelas que são “um jogo de armar”, ou as que são “pura forma”. Dependendo, todas me atraem, cada qual à sua maneira. Este, por exemplo, é um romance que adoro até hoje por mostrar em uma mesma obra o potencial de uma dezena de estilos, mas não realizar nenhum. (Círculo do Livro. Tradução de Nilson Moulin).
43 – A vida: modo de usar, de Georges Perec – Até hoje não gosto dos amigos secretos, é uma incomodação e eu tenho muito o azar de cair na mão de algum malandro que não vai nem dá presente, ou dá alguma coisa super chinela que ele comprou no R$ 1.99 indo pra festa. Mas tenho de reconhecer que talvez tanto azar seja para contrabalançar ter ganhado este aqui numa festa de fim de ano da Geral da ZH nos anos 1990 (do então colega Altair Nobre). Outro livro que é, a seu modo, uma rica coletânea de histórias, estilos, possibilidades, todas levando ao cerne da questão: o quanto pode a literatura, o quanto sua imaginação expande a vida e a realidade, e não deve a elas vassalagem alguma. Ah, sim, o livro: histórias que se cruzam tendo por epicentro um prédio em Paris. Quanto menos você souber, melhor (Companhia das Letras. Tradução: Ivo Barroso).
44 – O poder e a glória, de Graham Greene – Em 1997 em já me considerava inescapavelmente ateu, ou ao menos agnóstico, o que seria a resposta mais precisa, o que não me impedia e ainda não me impede até hoje de ser um leitor interessado em textos sobre fé, religião e outras dessas coisas metafísicas que nós, humanos, inventamos para dar sentido ao acaso que nos concede vidas pequenas tão breves neste vasto universo. Aqui, Greene contrapõe em sua narrativa dois tipos de fés: a fé corrompida de um padre hipócrita e beberrão que perambula pelo interior do México oferecendo ao povo sacramentos proibidos pela política oficial anticlerical de inspiração revolucionária; e a fé pura, virtuosa, efervescente e sincera do comissário político que o persegue. Sendo Greene um cristão, claro que a fé mais perigosa é a do fanático revolucionário, enquanto o padre se torna o sacerdote que deveria ter sido sempre só após se tornar um perseguido. Apesar de seu juízo politicamente comprometido, esse insight permaneceu comigo: cuidado com a pureza das intenções. Lido no carro numa das primeiras viagens que fiz a trabalho pelo jornal, a Canela e Gramado. Sob chuva torrencial. (Record. Um bônus: a tradução era do Mario Quintana)
45 – Dom Quixote, de Miguel de Cervantes – Outro daqueles livros que fui ler relativamente tarde na vida (eu devia ter uns 24) porque, bem, eu meio que já o conhecia, igual a todo mundo, não? Não, claro que não. Só lendo pude ver o quanto havia de graça, de humor, de melancolia e até de um espírito galhofeiro metalinguístico que muito se associa ao pós-moderno de hoje, veja só. Um daqueles livros-tapeçaria: por qualquer ponto que se olhe, há um fio a ser puxado (Nova Cultural. Tradução de Visconde de Castilho, Visconde de Azevedo e Manuel Chagas)
46 – Dinheiro Queimado, de Ricardo Piglia – este foi o primeiro livro que li de Ricardo Piglia, muito pela recomendação de colegas da ZH fascinados com o aspecto “história real” da narrativa, uma vez que Piglia ficcionalizar um crime real, o de uns argentinos que assaltaram um banco em Montevidéu e, acossados, queimaram o dinheiro roubado para ganhar tempo antes de serem inevitavelmente mortos pela polícia. Lendo seus diários, aliás, percebe-se que ele acalentou o projeto por uns 20 anos. Pra mim, valeu. (Companhia das Letras. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar).
47 – Matadouro 5, de Kurt Vonnegut. – Ali pelos meses iniciais de 2005, eu ainda não havia lido este livro, embora fosse fã de Os Anéis de Saturno e de Café da Manhã dos Campeões. Não tenho como explicar isso. Penso, aliás, que ele está nesta lista não pelo impacto que teve em mim, e teve, mas pelas circunstâncias gerais, a bem dizer. É um livro cínico e sarcástico e melancólico e reflexivo, lido num período de absurda felicidade, o que o tornou um “talismã emocional”, se é que isso existe. Digamos apenas que eu estava com a prova do livro enviada pela L&PM (nova edição recém-lançada naquela época) em um primeiro encontro que transcorreu maravilhosamente bem e que deu início a um romance que dura até hoje. O livro em si talvez não tenha nada a ver com isso, mas paixões literárias são arbitrárias, como qualquer paixão. (L&PM. Tradução de Cássia Zanon)
48 – Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves – Pela importância que atribuo a este livro, gostaria de ter alguma história pessoal melhor, mas o fato é que ele saiu em 2006, quando eu já era setorista de livros no jornal, a editora me mandou um exemplar, eu li. Mais de uma vez. Porque para mim o que marcou enquanto lia foi a certeza, o arrepio que poucas vezes senti de estar lendo em primeira mão o que virá a ser um clássico para as futuras gerações. Era isso, mas se quiserem ler mais sobre o livro, deem um bico nesta coluna aqui.
49– O Silencieiro, de Antonio di Benedetto – Poucos souberam apreender o caráter incômodo e turbulento das cidades na América Latina quanto este argentino que, já em 1964, escrevia sobre um homem profundamente infeliz pela cacofonia dos ruídos urbanos à sua volta. A primeira coisa a se dizer do injustamente pouco conhecido Di Benedetto é que se trata de um autor que desde as primeiras páginas cativa o leitor pela qualidade elíptica, alusiva, “estranha” de sua prosa, composta de frases curtas, direto ao ponto, contando eventos encadeados por um tênue fio que não chega a dominar a narrativa. Comecei a ler numa pauta na PUCRS – era 2008, não sei o que eu havia ido fazer lá. (Globo. Tradução de Maria Paula Gurgel).
50 – Assombro, de Chuck Palahniuk – Lembra quando eu falei na introdução o quanto era chato sentir que não há mais novidade no horizonte? Ali por 2010 era como eu me sentia a respeito da literatura de horror, que eu acompanhava desde a adolescência e que andava tão morta-viva que a “onda do momento” eram paródias de obras clássicas com zumbis inseridos na narrativa, como o infame criador da onda Orgulho e preconceito e zumbis, um romance com passagens ótimas e trechos horríveis – o que era ótimo era da Jane Austen, o que era horrível era do Seth Grahame-Smith, provando a inutilidade da coisa toda. E aí eu li este livro. O provocador de O clube da luta cria um romance no qual aspirantes a escritores atendem a um anúncio de jornal para um retiro a salvo de distrações e, bem, digamos que não é uma boa decidir essas coisas por impulso. A narrativa principal alterna-se com “contos” dos autores convidados. Que me mostraram o quanto a literatura de horror ainda tinha potencial para fogo, ranger de dentes e tripas. Se quiserem ter uma ideia, procurem “entranhas” ou vísceras” mais o nome do autor no Google – e eu não me responsabilizo pelo que vocês vão encontrar no processo. (Rocco. Tradução de Paulo Reis)
Acho que era isso, pessoal. Se quiserem outra lista dessas, torçam para eu viver até o cem.
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Foto da Capa: Acervo do autor.
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