Há sempre uma crônica engatilhada para a Sler. Vai que falte ideia na quarta-feira, dia de entregar ao Editor. Vai que não dê tempo de revisar cada frase. Toda frase é traiçoeira, e uma boa revisão pode amenizar os danos de um adjetivo mal colocado, uma vírgula fora de época, um assassinato gramatical, seja qual for o tema.
Às vezes, no entanto, a realidade imediata se impõe, e já não é possível não falar sobre ela. Nem que ficando em silêncio, como diante desta enchente no Rio Grande do Sul, embora não seja o que estamos vendo com a legião gritante e solidária de voluntários acudindo, acolhendo, dando o que não têm para salvar vidas, literalmente salvando.
Pois, lá nos anos quarenta, o poeta publicou, em seu Sapato Florido, o seguinte poema em prosa:
“A enchente de 1941. Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas dentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores?
Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas…”
Ali a realidade já dispensava metáforas, adentrando nua e crua a vida de todos os que estavam presos nela. Mais de oito décadas depois, a tragédia se repete, ampliada pelo aquecimento global e o descaso, diante da destruição do Planeta: mais vítimas, mais destruição. Falar dessa realidade é preciso, sem tempo de revisitar cada frase. Mas havia um detalhe decisivo, no poema de Mário Quintana. O poeta escreve sobre o que não vai escrever, porque não precisa. Imaginário invadido pela realidade, blefa que era absolutamente desnecessário fazer poemas, mas ele o faz, com direito a sonhar e vestir a realidade, ajeitando as palavras até que cheguem ao nosso sentimento.
O sofrimento com as vítimas das catástrofes climáticas não vem sendo suficiente para chegar ao coração de quem podia fazer algo, e não fez. Agora falta casa, falta água, falta comida, falta dignidade, falta a memória, levada pela correnteza dos objetos perdidos. Para os sobreviventes, tudo há de voltar, de alguma forma. Mas, se não vier com poesia para alimentar os sentimentos essenciais para todos, há de faltar novamente.
Foto da Capa: Freepik
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