A expectativa de que o segundo governo de Donald Trump seria uma simples continuidade de sua primeira administração revelou-se equivocada. De acordo com a Folha de S. Paulo, especialistas que abrangem desde a esquerda até a centro-direita, incluindo historiadores, analistas e cientistas políticos, têm utilizado o termo “golpe” para descrever as medidas implementadas por Trump no primeiro mês de seu novo mandato. O centro de estudos conservador Manhattan Institute expressa preocupação com a estabilidade democrática e a possibilidade de uma ruptura institucional. Nesse sentido, o professor da Universidade de Harvard, Steven Levitsky, autor do livro “Como as Democracias Morrem”, alerta para o risco de colapso da democracia nos Estados Unidos sob essa nova administração.
Em contrapartida, veículos de comunicação como o Wall Street Journal e a Fox News, ambos pertencentes ao empresário Rupert Murdoch, aliado de Trump, e o Washington Post, de propriedade de Jeff Bezos (fundador da Amazon), classificam tais medidas como agressivas, porém não as interpretam como um golpe. O questionamento central que emerge é: por que há tanta controvérsia em torno do primeiro mês deste governo?
A análise de artigos publicados na mídia e entrevistas com especialistas, além da observação de podcasts americanos, permite compreender o perfil dos principais assessores do presidente e a orientação ideológica e econômica que impulsiona essa administração. Conforme apontado no podcast Wisecrack, antes das eleições, quando eram divulgadas as propostas dos intelectuais da extrema-direita, muitos as consideraram bobagens absurdas. Contudo, essas mesmas ideias tornaram-se a base programática do atual governo.
O estrategista mais influente desse movimento é Steve Bannon, figura central da extrema-direita global. Bannon aconselhou Trump a adotar uma tática específica: anunciar diariamente três medidas de grande impacto, de modo que ao menos uma delas dominasse o noticiário, enquanto isso, outras seriam implementadas sem grande atenção pública. Essa estratégia, conhecida como “cortina de fumaça”, tem sido empregada com sucesso.
O passado de Donald Trump é amplamente conhecido, mas pouco se sabia sobre o seu vice-presidente, James David Vance. Advogado de formação, Vance foi funcionário do bilionário do Vale do Silício, Peter Thiel. Seu reconhecimento inicial advém do livro que escreveu sobre a classe trabalhadora branca nos EUA, tornando-se um best-seller. Sem histórico político relevante, Vance foi lançado como candidato ao Senado e eleito por Ohio em 2022, após uma campanha financiada com 10 milhões de dólares por Thiel, uma das mais caras dos EUA. Em menos de dois anos de atuação política, tornou-se vice-presidente e porta-voz dos interesses de seu mentor no governo.
Peter Thiel, por sua vez, tem declarado publicamente que a liberdade e a democracia são incompatíveis, atribuindo a crise política ao voto feminino e ao crescimento do número de beneficiários da previdência social. Ou seja, o problema da crise dos EUA são as mulheres e os pobres. Apesar de ser abertamente homossexual, rejeita o identitarismo progressista. Ele e outras pessoas próximas a Trump seguem concepções filosóficas e políticas que derivam de duas correntes principais: uma delas, vinculada ao autodenominado filósofo Curtis Yarvin, que defende a superioridade intelectual inata de pessoas brancas em relação a negros e pardos, bem como rejeita as premissas do iluminismo, as questões éticas humanistas, a universalidade da razão, sociedade igualitária etc. A outra corrente associa-se ao pensamento dos cristãos carismáticos e reformados, que inclui os TheoBros, adeptos do nacionalismo cristão branco, também chamado de catolicismo pós-liberal. Os TheoBros querem substituir a constituição pelos Dez Mandamentos.
As ideias dessas correntes ideológicas encontram eco nos discursos do vice-presidente Vance, que chegou a declarar que “as eleições deveriam ser baseadas no voto das famílias”. Tal proposta sugere que apenas o chefe da família teria direito a voto, representando sua esposa e filhos, o que resultaria na cassação do sufrágio feminino. Propostas que antes eram consideradas absurdas agora figuram na agenda governamental, entre elas a fusão entre Igreja e Estado para o benefício comum da população; a reorganização do governo em unidades menores geridas por CEOs, com plenos poderes, nos moldes das grandes corporações; e a premissa de que a eficiência de qualquer sistema depende da existência de um líder com autoridade irrestrita. Nesse sentido, argumenta-se que empresas bem-sucedidas, como a Microsoft, funcionam porque Bill Gates exerce um papel de liderança semelhante ao de um Napoleão corporativo.
Outras propostas dessa agenda incluem a limitação da influência da mídia e das universidades, além da tese de que a superioridade intelectual dos brancos justificaria que os demais e as mulheres fossem subordinados à liderança masculina branca. Há ainda a sugestão de criação de “territórios livres de leis e convenções internacionais”, destinados à residência da elite financeira, onde poderiam viver sem restrições regulatórias. Segundo alguns analistas, os bilionários das big tech gostariam de morar num paraíso que não sofra tanto os impactos extremos do aquecimento global. Talvez isso explique o interesse de Trump na Groenlândia, que, além de explorar os seus minerais, poderá transformá-la num “território livre de leis convencionais e do calor”.
Em síntese, a proposta central dessa administração consiste na transformação dos Estados Unidos em uma estrutura empresarial, concedendo amplos poderes aos CEOs. Líderes como Elon Musk e seus aliados acreditam que são intelectualmente superiores a trabalhadores comuns e empresários malsucedidos, motivo pelo qual não deveriam estar sujeitos às mesmas leis. Resta observar os desdobramentos desta administração nos próximos meses. Conseguirá a liderança Trump-Musk consolidar seu projeto ou a sociedade americana reagirá para impedir tal transformação?
Referências:
- Historiadores e cientistas políticos passam a chamar de golpe ações de Donald Trump. Folha de São Paulo, 28/2/2025, p. A33.
- JD Vance, Curtis Yarvin, and the End of Democracy. Wisecrack (Podcast)
-To Understand JD Vance, You Need to Meet the “TheoBros”. Kiera Buttler.
Todos os textos de Luis Felipe Nascimento estão AQUI.
Foto da Capa: Reprodução