Na década de 1980, este articulista fez parte do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre (COMPAHC), como suplente da conselheira arquiteta Sônia Nara Pereira Rêgo Mascarello, outrora sua professora da Disciplina “Arquitetura Brasileira”, representante do Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio Grande do Sul (IAB-RS). Numa das poucas reuniões nas quais a substituiu, foi discutida a restauração da “Cobra Catarina” (Figura 1). Esta era a denominação utilizada pelos conselheiros presentes. Dentre eles, estavam figuras do quilate de Francisco Riopardense de Macedo (1921-2007) e Júlio Nicolau Barros de Curtis (1929-2015), saudosos professores que foram fundamentais para a preservação do patrimônio cultural da cidade.
Certamente poucos porto-alegrenses ouviram falar da Cobra Catarina. Dia destes numa conversa de bar, um amigo deste que aqui escreve, Danilo Corte Real, lembrou de onde veio esta denominação que os membros do COMPAHC adotaram para um bem cultural da cidade. Contou ele que um ambulante, vendedor de ervas e remédios naturais no entorno do Chalé da Praça XV e do Mercado Público, na década de 1960, carregava consigo maletas com dois animais que utilizava para atrair o seu público. Numa estava o lagarto Pascoal e na outra a cobra Catarina. Diariamente fazia a sua performance para sobreviver da venda dos produtos que portava.
Pois bem. Na tal reunião do COMPAHC, discutiu-se a restauração da pavimentação da rua dos Andradas, popularmente conhecida como rua da Praia, no trecho entre as ruas Marechal Floriano e Doutor Flores, segmento pavimentado na administração do intendente José Montaury de Aguiar Leitão (1858-1939). Este engenheiro administrou Porto Alegre entre 1897 e 1924. Nesta oportunidade, abriu-se uma planta colorida e detalhada da pavimentação da via, mostrando a composição do desenho, que lembrava o couro de um ofídio. Daí a alusão ao réptil explorado pelo camelô de outrora, uma destas figuras que marcaram a história popular da cidade. Um dos conselheiros aventou a possibilidade de levantar a pavimentação de paralelepípedo, nivelando com as calçadas, proposta descartada pela quase totalidade dos presentes. Tal procedimento seria uma gritante descaracterização da histórica pavimentação.
Sérgio da Costa Franco (1926-2022) lembra que o mais antigo calçamento da rua da Praia era feito de pedras irregulares, com uma calha central para a qual se inclinavam as calçadas laterais. Certamente uma herança portuguesa. Este ilustre estudioso da cidade indica que essa pavimentação deu lugar a uma solução nova na segunda metade do século XIX. Diz ele que “O sistema de pista abaulada, com sarjetas adjacentes a cada um dos passeios, começou a ser introduzido em meados da década de 1860/1870, ficando pronto inicialmente entre as ruas Uruguai e General Câmara, depois entre Uruguai e Marechal Floriano, depois entre esta última travessa e a Vigário José Inácio; já em 1869, cuidou-se do trecho entre as ruas da Ladeira e Clara, isto é, entre General Câmara e General João Manuel. O trecho da subida, entre Doutor Flores e Senhor dos Passos, só foi concluído em 1874” (FRANCO, 2018, p. 30).
A pavimentação requintada com “paralelepípedos em mosaico”, em duas cores (róseo e preto), aqui tratada como Cobra Catarina, foi realizada no último período da administração de Montaury, em 1923. Os remanescentes ainda existentes encontram-se nos trechos não alterados pelo calçadão para pedestres realizado na administração do uruguaianense Guilherme Socias Villela (1935), prefeito da cidade entre 1975 e 1983.
Desde a antiguidade, os mosaicos servem de verdadeiros tapetes a ornamentar especialmente espaços internos. São comuns em ruínas de remanescentes da Roma antiga. Serviram de inspiração para que os portugueses desenvolvessem a chamada “calçada portuguesa”, tipo de arte pública desenvolvida por profissionais chamados de calceteiros, muito utilizada nas ruas de Lisboa. No passeio central da Praça dos Restauradores, entre o Rossio e a Avenida da Liberdade, encontra-se um dos mais belos exemplares existentes no mundo, arte pública da autoria do arquiteto, artista plástico, ilustrador e cartunista lisboeta João Abel Carneiro de Moura Abrantes Manta (1928) – [Figura 2]
No Brasil, as calçadas com mosaicos portugueses mais conhecidas são os calçadões da Avenida Atlântica (1970), de autoria do artista plástico e paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994), na Praia de Copacabana, com 4,15 quilômetros de extensão, obras modernas abstratas, cartão de visitas da cidade do Rio de Janeiro, classificado em 1991, como patrimônio cultural pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC). São de calcita branca com basaltos pretos. Administrava a Guanabara, Francisco Negrão de Lima (1901-1981), cujo mandato ocorreu entre 1975 e 1971. Destacam-se as calçadas fronteiras aos edifícios da avenida e o canteiro central. No lado da praia, o artista e arquiteto optou por modificar a disposição do desenho sequenciado de ondas preexistente, disposto transversalmente, por outro igual, paralelo ao Oceano Atlântico. Este trecho não foi uma inovação de Burle Marx. O piso original deste trecho tinha sido feito na administração do engenheiro André Gustavo Paulo de Frontin (1860-1933), na primeira metade do ano de 1919.
Em Lisboa, na Praça Dom Pedro IV, conhecida também como Largo do Rossio, encontra-se a obra pioneira na forma de ondas, do início do século XIX, criada pelo engenheiro militar português, nascido em Luanda, Angola, Eusébio Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado (1777-1861), para representar a interface da cidade com o rio Tejo (Figura 3). A ideia de Pinheiro Furtado espraiou-se nos países lusófonos. Aliás, em Porto Alegre, exatamente no trecho da rua da Praia, em um dos lados da Praça da Alfândega, também existe uma calçada portuguesa, inspirada no Rossio e em Copacabana. É oportuno lembrar que no passado, em todo o bairro de Copacabana, as calçadas lembravam os passeios lisboetas. Lamentavelmente foram eliminadas no final de 1995 e início de 1996, na primeira administração do prefeito César Maia (1945), ocorrida entre 1993 e 1997.
Em Curitiba as calçadas portuguesas (também chamadas de petit-pavé) também se destacam. Dentre as diversas composições existentes, merece menção a imagem da pinha e do pinhão da Araucária angustifólia, que conhecemos popularmente como “Pinheiro do Paraná”, aplicados no calçadão da rua XV de Novembro, no centro da cidade (Figura 4). Símbolo do chamado “paranismo”, movimento artístico e cultural na busca de uma identidade regional desenvolvido nas décadas de 1920 e 1930.
No Rio Grande do Sul, merecem destaque a calçada do Palácio Piratini, da década de 1920, em Porto Alegre, e a pavimentação fronteira à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Rio Grande. Belos tapetes de pedra em preto e branco. Certamente foram estes antecedentes, com exceção do calçadão da Avenida Atlântica, que inspiraram pavimentações dos leitos de rua como tapetes para a passagem de veículos. Júlio de Curtis cedeu ao articulista uma imagem de uma singular pavimentação com paralelepípedo que outrora ornamentava a rua Caldas Júnior, entre as ruas Riachuelo e Andradas (Figura 5). Interessante é que foi usado apenas uma coloração de pedra, mas a composição era bela. Lamentavelmente, na década de 1970, o trecho foi asfaltado. Uma perda lamentável.
A atual administração municipal de Porto Alegre está procurando fazer das intervenções nas calçadas e ruas centrais, sua cereja do bolo. O tiro saiu pela culatra. Ruas como a Voluntários da Pátria, Vigário José Inácio, receberam sofríveis pavimentações de blocos de cimento, aliás, com péssimo acabamento, diga-se de passagem. Neste contexto, interviu-se também no leito da rua dos Andradas, a Cobra Catarina. Para não dizer que a sensação é de que nada foi feito no outrora belo mosaico de paralelepípedos, a percepção é de que o estado lamentável em que se encontrava piorou. Principalmente pela manutenção da irregularidade da pavimentação, frestas indesejáveis, deficientes acabamentos nas cercanias das tampas de esgoto. Pura insensibilidade com a coisa pública tombada. O leitor precisa ver com seus próprios olhos como foi realizada a interface entre o piso novo da rua Vigário José Inácio e a pavimentação de paralelepípedo da rua da Praia. Um desastre.
Para salvar a “Cobra Catarina”, que agora agoniza, espera-se que a população abra os olhos para tudo o que vem acontecendo na cidade, especialmente neste ano de 2024. Resta apenas a esperança em dias melhores para a capital gaúcha.
No samba “Rua da Praia”, do compositor Alberto do Canto, as pedras do calçamento foram eternizadas. “Rua da Praia que não tem praia, que não tem rio, onde as sereias andam de saia e não de maiô. Rua da Praia do jornaleiro, do camelô, do estudante que a aula da tarde gazeou. Rua da Praia da garotinha que quer casar, do malandrinho que passa o dia jogando bilhar. Se as pedras do teu leito algum dia pudessem falar, quantas cenas de dor e alegria haveriam de contar”. Espera-se que a sua letra ainda sensibilize alguém que proporcione o retorno aos tempos do mosaico de Montaury, afinal é um legado para fazer de fato parte do patrimônio ambiental urbano da cidade e em especial da rua mais tradicional de Porto Alegre.
Em tempo, entre o Palácio Piratini e a Catedral Metropolitana, existe uma pavimentação extremamente bem cuidada, exatamente igual a existente na rua da Praia. Que sirva de referência para uma verdadeira restauração do tapete pétreo da rua da Praia.
Bibliografia:
Franco, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. Edigal, 2018.
Foto da Capa: Acervo do Autor
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