Na abertura da sua tradução de um grande beatnik – ou mais ou menos isso –, Eduardo Peninha Bueno descreve o encontro que teve com o autor traduzido. Esse estava na velha casa de sempre, acompanhado de uma bela mulher (ou mais ou menos isso) e, ao final da visita, o brasileiro perguntou onde poderia encontrar um pouco da alma beat, na viagem que estava fazendo pela América do Norte.
A memória de uma leitura feita há quarenta anos e mais a quantidade de traduções do Peninha me surripiou o nome do bardo. Seria Gregory Corso? Allen Ginsberg? Não vou atrás do nome correto, pois me recuso (depois eu explico) a dar um Google. Ou a deixar um áudio para um cara que responderia com outro muito maior e só me enchendo de osso para me chamar de burro; pior ainda, sem dar a informação.
Dia desses, com a memória do celular pior do que a minha, precisei apagar muitos rastros, especialmente do WhatsApp. A ideia era evitar (depois eu explico) a pressão capitalista americana que venho sofrendo para trocar de aparelho. Só de apagar as mensagens descaradas do Peninha, recuperei uns dez por cento de memória. Da máquina.
Enfim, naquela ocasião, sob um silêncio atroz diante de sua pergunta, meu naco de memória conta que o brasileiro batia em retirada, quando o tal do bardo respondeu a ele que Ronald Reagan acabava de ser eleito presidente dos Estados Unidos; logo, se quisesse encontrar o que buscava, que tentasse as montanhas.
Jamais ousaria perguntar se ele tentou, mas eu estou tentando encontrar algo parecido, na minha volta à terra do tio Sam. Nem precisava. Vim reencontrar a minha filha que veio estudar aqui, mas já está pensando em picar a sua mula. Este reencontro ao vivo, ao cheiro em carne e osso de pai e filha, bastaria para retornar a um país que acaba de reeleger Donald Trump. E, cumprindo a promessa da explicação, o país do capitalismo selvagem, das fontes sangrentas das novas tecnologias, daí a menção ao Google evitado, e ao celular que hoje me impingem trocar.
Sei que estou sendo ingrato com uma invenção que me permite conversar com a filha todos os dias do ano, mesmo separado por Américas. E que também vou ser ingrato com ela ao dizer que evito me hospedar em sua kitchenette, onde, sob os augúrios de uma convivência apertada, pode me soltar ossos mais intensos do que os do Peninha; e sem a mediação da tela.
Por isso, eu me hospedei no pequeno motel de Berkeley. Igual aos dos filmes, trinta e dois quartos fazem uma única curva em tão somente dois andares. Com rampa de acesso, não precisa de elevador. Rústico, simples, e até seria barato, não fosse o dólar a cada suspiro do mercado financeiro. Posso trabalhar (nova ingratidão – on-line) no quarto e contar as horas para ver a filha. No 112, tem o que precisa, sem luxo, poder nem glória. A internet é de graça e nada falta no ambiente comedido, sem a sombra de nenhum excesso. Oferecem até café da manhã, em uma sala micra, comunitária, lá no começo da curva, onde poucos metros quadrados conseguem dar conta de iogurte, manteiga, geleia, pão torrado. E companhia presencial.
Foi lá que descobri a Sandy, a vizinha do 111. Na verdade, a caminho de lá, já trocamos um sorriso e atravessamos juntos o estacionamento que é o pátio de todos os quartos. O sorriso foi tão bom que fiz questão de acompanhá-la no seu ritmo, que é relativamente muito lento, pois não se pode cravar de lentos os passos de uma mulher nonagenária. Confesso que não entendi de onde ela vem, pois o meu ouvido ainda não desembarcou inteiro por aqui. Mas a parte já chegada confirma que ela é uma dublê de Telma (ou Louise) que viaja sozinha no seu motorhome, estacionado na frente dos nossos quartos. Conta-me que foi funcionária pública de uma pequena cidade e planejava cruzar todo o país com o marido. Ele partiu antes, não deu tempo, por isso viaja sozinha. Se bem entendi, ela pretende ir a Lake Tahoe (ou algo parecido), mas está adiando, pois tem apreciado comer maçãs na relva do campus universitário, especialmente à tarde, quando a temperatura está bastante agradável. Por ser meio tímido, por temer rejeições e ter novo encontro marcado com a filha, não me insinuei para ir junto.
Mas, ao contrário do Peninha da era Reagan, eu, em plena era Trump, dei a sorte de não precisar ir às montanhas para encontrar uma alma beat.
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Foto da Capa: Reprodução da Internet