No último domingo, 15 de outubro, comemoramos o dia do professor, data idealizada por Antonieta de Barros, mulher negra, professora e escritora e Deputada Estadual por Santa Catarina. “A primeira grande lei educacional do Brasil foi sancionada por Dom Pedro I em 15 de outubro de 1827, um marco para a educação brasileira. A data era comemorada informalmente, mas foi um projeto de lei de Antonieta que criou o Dia do Professor e o feriado escolar nessa data (Lei Nº 145, de 12 de outubro de 1948), em Santa Catarina. A data seria oficializada no país inteiro somente 20 anos depois, em outubro de 1963, pelo presidente da República, João Goulart. Outras leis importantes foram concessões de bolsas de cursos superiores para alunos carentes e concursos para o magistério, para elevar o ensino público e evitar apadrinhamentos.”
Lembro-me bem do dia em que entrei em uma sala de aula, ainda como estagiária, em um projeto da cidade de Novo Hamburgo chamado AFA (aprender fazendo). Eu não tinha condições de pagar a mensalidade do curso de Magistério e foi através dessas práticas que consegui realizar esse sonho.
Algumas pessoas não acreditam em vocação ou chamado, mas eu, ah, eu sim! Não existe outra explicação para o que eu sinto há 24 anos pela minha profissão.
Mas voltando ao meu início profissional: me recordo do choque que levei ao conhecer a realidade da escola, ao ver os alunos em situação de vulnerabilidade e a fragilidade das relações entre crianças e professores, separados por uma linha tênue entre amor e projeção das violências vividas fora da escola.
Eu caí na periferia. Caí e me levantei inspirada e motivada em fazer algo mais por eles, por querer mudar o mundo, por ansiar por uma vida mais digna em que os pobres e pretos pudessem ser vistos como gente e não, como aqueles que moram “no cantão”.
Nessa época meus olhos viam, mas eu não tinha a dimensão ainda dos impactos do racismo na vida de cada criança negra. Crianças belíssimas, mas com uma baixa autoestima, com fraturas emocionais instauradas em sua psique e em seus corpos.
Como acreditar que sou lindo, que posso estudar, aprender, e desenvolver se o mundo que viviam (e ainda vivemos) foi historicamente projetado para que não pudéssemos usufruí-lo?
Eu me encantei pela periferia, foi amor à primeira vista da novíssima professora que dedicou-se ao máximo para que esta experiência docente fosse inesquecível para aqueles estudantes, pois não saberia o que seria deles depois da minha passagem por lá.
Há 24 anos, eu não tinha um letramento racial básico, nem escritores à disposição para que eu pudesse trilhar um caminho com outros referenciais. Mas eu tinha e tenho uma coisa chamada ANCESTRALIDADE pulsando em minha alma, meu corpo e em tudo o que eu fazia.
Esta ancestralidade se encarregou de que anos mais tarde passasse em um concurso público e pudesse continuar o que iniciei anos antes e colocasse à disposição dos estudantes periféricos os conhecimentos que adquiri e pudesse aprender com eles também.
É lamentável, mas algumas coisas não mudam: hoje, nesse exato momento em que você lê este artigo, temos crianças e adolescentes sofrendo racismo na escola. Pessoas brancas neste minuto estão marcando para sempre vidas de pessoas negras que gostariam de estar apenas vivendo.
Eu escrevo essas linhas para lembrar a mim e a tantos outros educadores negros da importância da nossa profissão e o quanto podemos sim estar conectados com nossos estudantes negros e talvez, eu ouso dizer que sim, ser uma referência para as suas vidas.
Estou sempre em alerta na escola: quando vejo um pretinho cabisbaixo, chego junto, levanto sua cabeça e pergunto: “E aí o que tá rolando?” Geralmente depois de um “nada sora” vem um relato tímido de alguma situação que na maior parte das vezes envolve racismo.
Amo chegar neles e elogiar os cortes de cabelo, quando conseguem ir pra escola com o cabelo black power ou quando usam tranças. (Porque muitos simplesmente NÃO CONSEGUEM PELO RACISMO)
Essas tecnologias de afeto são imprescindíveis na constituição dos nossos estudantes, pois nas matérias oficiais eles ainda não se veem, então se faz necessário burlar os caminhos do racismo.
Fui escolhida para ser professora. O faço pois acredito que só através da educação conseguimos encurtar caminhos para que nosso povo alcance autonomia, possa ler e escrever na idade certa, possa estar dignamente estudando e se capacitando para que os índices de evasão escolar diminuam .
Educo para que o povo preto conheça a nossa história milenar, nossa cultura e sabedoria africana que estão disponíveis desde tempos imemoriais.
Nêgo Bispo, um filósofo quilombola, nos diz que a vida é “começo, meio e começo”, sendo assim depois de duas décadas voltarei ao bairro que me acolheu como professora e iniciaremos lá uma unidade presencial do meu trabalho social, o Projeto Oorun (@espaco.oorun). Estaremos lá para continuar a estimular a autonomia e a identidade das crianças negras periféricas.
Dedico estas palavras que falam de mim, mas que são extensão de vida de tantos educadores negros que, todos os dias, lutam para se salvar e salvar os seus semelhantes.
Somos fundamentais para a construção de um país mais justo, igualitário e que tenha seu povo preto vivo.
Um salve a tantas Antonietas, Oliveiras, Julianas, Abdias, Fiamas, Miltons, Ninas… Feliz dia do professor! Sempre, todos os dias.
Fernanda Oliveira é pedagoga pela UFRGS, mãe, professora, fundadora do Projeto Social Oorun que atua na afrobetização de crianças negras, cofundadora do coletivo de Profes Pretas, gestora de Filosofia e Cultura na Odabá
Foto da Capa: Divulgação