Eu tinha tudo pra ser alguém atormentado pela dúvida.
Vindo de uma família de muitos privilégios, ainda que não rica, tive a sorte – e isso é sorte, mesmo – de sempre ter o necessário disponível. Mesmo que meus pais tenham passado por alguns momentos financeiros difíceis, como na Era Collor, ainda assim eu fui suficientemente blindado disso tudo a ponto de só saber que os tempos tinham sido mais complicados depois de as coisas já estarem melhores.
Por isso que digo que eu tinha tudo para ser alguém tomado pela dúvida.
Afinal, a dúvida é também um privilégio. É só quando temos muitas opções que podemos duvidar da melhor escolha profissional, do próximo livro que leremos, do que faremos na noite de sexta-feira, do que queremos almoçar… enfim, a dúvida é o triunfo do desperdício.
Alguém que desde cedo conviveu com a carência em geral não tem como ser um adorador da dúvida.
Infelizmente, sabemos bem que a condição financeira não só tem a ver com a possibilidade de consumo, mas também com as versões de mundo possíveis. Alguém com poucos recursos tende a ter um universo bem mais limitado de opções de vida, de escolhas de realidade.
É só quando algumas condições mínimas da vida estão já dadas que se abrem outras questões mais sofisticadas. Cursar engenharia ou medicina? Jantar comida japonesa ou italiana? Comprar um café no caminho do trabalho ou levar de casa? Assistir à série do momento ou ler o livro recém-lançado?
Por outro lado, a caminho se torna muito unívoco para aqueles que precisam se preocupar com o que comer, com o que vestir, com ter um teto sob o qual dormir.
É por isso que o sistema em que vivemos é tão cruel: a lógica neoliberal não tem a ver só com a distribuição de riqueza e prestígio, mas também, e especialmente, com a oferta de versões possíveis de si mesmo. E nada é mais brutal do que a redução de alguém a uma narrativa única.
Mas eu não sou alguém assombrado pela dúvida.
Quando estou frente a uma decisão do dia a dia, em geral a minha resposta é: “tanto faz”.
Esta expressão – “tanto faz” – é o escombro que restou de uma cena de infância. Eu devia ter uns seis ou sete anos, e estava com a minha família no supermercado (olha aí o privilégio). Para não ficar enchendo a paciência dos meus pais, certa vez eles me deixaram no corredor de brinquedos e me disseram pra eu escolher um não muito caro enquanto eles faziam o rancho (palavra que descobri só há pouco ser um regionalismo) mensal.
Pois bem, lá estava eu frente ao que parecia na época uma cornucópia de bonecos dos Comandos em Ação (traduzindo pro pessoal mais novo: action figures dos G.I. Joe). Obviamente eu fiquei em profunda dúvida. Como escolher só um, se todos pareciam tão bonitos, tão fortes, tão coloridos? Um tinha uma metralhadora, mas o outro estava equipado com um óculos de visão noturna. Outro ainda tinha um paraquedas, sendo que eu já brincava de amarrar sacolas de supermercado nos bonecos e jogá-los da janela do apartamento. Seria uma versão oficial para a minha gambiarra infantil: um com um paraquedas “de verdade”. Mas e o outro, com óculos de visão noturna?
Pra uma criança que se angustiava de andar por casa à noite, enxergar no escuro era uma espécie de superpoder, ou pelo menos um bálsamo tranquilizador.
Paraquedas ou visão no escuro? Paraquedas ou visão no escuro? Paraquedas ou visão no escuro?
Quando meus pais voltaram para me resgatar, viram a seguinte cena: um pequeno Luciano com um bonequinho em cada mão, profundamente imerso em si mesmo e em seus pensamentos. Enfim, em dúvida.
Meu pai chegou bem perto de mim: “Lu, então, o que tu quer levar?” Pânico. Finalmente tinha chegado o derradeiro momento da escolha. O problema não era qual boneco eu levaria, mas qual eu deixaria pra trás. Aliás, hoje em dia eu sempre rio quando algum soldado grita, nos filmes de guerra: “Nenhum homem fica pra trás!”. Na verdade, essa frase é daquelas que a gente escuta mais em inglês: “No man left behind!”. Em geral, a este grito segue-se uma cena heróica de resgate, não sem alguém levar um tiro num flanco descoberto.
Ok. Não era algo tão drástico, mas posso dizer que tinha uma batalha acontecendo dentro da minha cabeça de criança. Quem eu deixaria pra trás?
Vendo meus desespero consumista, meu pai se abaixou e me perguntou de qual boneco eu mais tinha gostado. A resposta: “Dos dois, pai. Eu gostei dos dois”. A réplica: “Bom, se tu gostou dos dois, então tanto faz qual tu vai levar, tu vai te divertir com qualquer um deles”.
Libertação. Eu tinha sido resgatado. O helicóptero paterno havia descido no meio da zona de conflito e me erguido de volta à segurança. Saí do supermercado feliz com a minha escolha. Ou com a minha não-escolha, sabe-se lá.
Acho que por isso me chama tanto a atenção quando algum paciente confessa seus suplícios com a dúvida. Seguir no meu emprego atual ou aceitar aquele cargo em outra empresa? O meu trabalho de agora é seguro, mas lá tem possibilidade de crescer, ser promovido e ganhar mais! E agora?
Não sou muito fã daquela frase batida de que cada escolha é uma renúncia. Esses chavões sempre me soam como autoajuda barata, como uma forma de resignação. Como se estar de bem consigo mesmo fosse abraçar a inelutável frustração da vida. Sim, a vida é frustrante, mas realmente não acho que isso seja motivo para cultuarmos a privação.
Este culto, aliás, tem muito a ver com o discurso neoliberal. Ao fazer parecer que viver é resolver uma prova de múltipla escolha (trabalho seguro ou chance de promoção?), o sistema capitalista passa a ilusão de que há um caminho correto a ser seguido. Curiosamente, é quase uma premissa religiosa: a suposição de que há um destino pré-determinado e que estamos aqui tentando descobrir qual o caminho certo a seguir, adivinhar uma suposta vontade divina.
Como se as escolhas se encerrassem no momento decisório, e não tivessem que ser sustentadas posteriormente. Ao nos fixarmos demais no que será perdido, esquecemos que não existe uma virada certa nas encruzilhadas que impomos a nós mesmos. Não somos assim tão importantes a ponto de que alguma entidade superior tenha escrito nossa história de antemão. Qualquer escolha é válida, o que importa mesmo é o que fazemos com a nossa decisão.
Mas nem por isso eu me vanglorio muito daquele “tanto faz”, caro leitor. Como é típico do que resta da infância, essa frase me assombra até hoje. Acabei me tornando alguém que “tanto faz” tanto no sentido de não me ver lá como tão especial como também daquele que “faz tanto”, que está o tempo todo fazendo alguma coisa.
Enfim, mesmo que tentemos fugir, o neoliberalismo, este imenso buraco negro sempre faminto e de boca aberta, sempre nos pega.
Ah, e eu decidi pelo soldado com visão noturna. É bom poder caminhar à noite pela casa, mas ainda penso como teria sido se tivesse escolhido o paraquedista.
Foto da Capa: Ana Shvets / Pexels