Era janeiro de 2019 e eu esboçava os primeiros rascunhos do que viria a ser o meu primeiro romance publicado. Já havia definido que escreveria sobre uma família tradicional, composta por mãe, pai e filho – ainda criança. Uma relação sólida com os avós paternos, por quem o menino era paparicado com regalias de uma criança muito amada. Até aí: nada de mais! Faltava apenas decidir o foco narrativo.
Tentei contar a história sob a perspectiva da mãe. No entanto, percebi que a narrativa contada dessa forma tomaria um rumo muito diferente daquele que eu pretendia dar a esse romance. Reescrevi o texto em terceira pessoa, mas não gostei do resultado. Não deletei nenhuma linha. Apenas criei um novo documento e reiniciei o texto a partir do olhar do menino. Contada em primeira pessoa, a saga de Nagib e seu amigo Samir ficou muito mais interessante.
Inspirei-me na ligação do meu filho com o meu pai para descrever a cumplicidade entre Nagib e o seu avô. Esmiucei detalhes da parceria e do amor entre os dois para construir um vínculo verossímil a outros netos e avôs. Fiz tudo issosem imaginar que, na época do lançamento do livro, o meu pai morreria de câncer de pulmão e o meu filho aprenderia com o Nagib como superar o luto. Nem sempre a arte imita a vida. Às vezes, o contrário também nos surpreende. Com o núcleo familiar construído, dediquei-me à escrita. Foram dez meses de intenso trabalho, pois eu não estava, unicamente, falando de uma família feliz. Para onde vão as borboletas à noite tinha como cenário a guerra na Síria.
Há alguns anos, eu acompanhava a evolução dos conflitos no Oriente Médio e ficava perturbada com as imagens que invadiam os noticiários. Bombardeios, atentados, destruições: uma infinidade de violência por todos os lados. Uma guerra interminável se alastrava, afetando pessoas que não tinham culpa alguma pelos acontecimentos. E no meio de tanta barbárie, um incontável número de inocentes se esforçava para sobreviver, entregando as suas vidas a gente nem um pouco confiável. Tragédias compartilhadas no café da manhã. Sonhos desfeitos nas águas do Mediterrâneo. Foi desse jeito que Alain Kurdi perpassou as fronteiras que o impediam de avançar e causou uma comoção tardia. O pequeno menino de dois anos precisou morrer para ser visto. Antes da divulgação daquela triste fotografia, muitos já tinham padecido da mesma forma e, depois dela, infelizmente, outros meninos continuaram a ter o mesmo destino.
Alain Kurdi também me comoveu e, embora a trajetória de Nagib não se limite à curta existência do menino sírio, ele foi a minha inspiração para a escrita. A história de Nagib é a junção de muitas que eu conheci enquanto pesquisava e estruturava o meu texto. Nagib e Samir são um mosaico de muitas experiências e sofrimentos. A analogia às borboletas não foi vagamente escolhida para deixar mais leve um tema tão pesado. Não foi em vão que eu fiz de Nagib uma criança investigadora: borboletas migram, borboletas almejam sobreviver ao inverno. E nesse contexto, o menino compara a partida do pai na madrugada à sina das borboletas monarcas, objeto do seu estudo.
Durante o período em que eu escrevi esse romance, transportei-me várias vezes a uma Síria arruinada. Minha viagem se deu por fotos, vídeos e pela leitura de muitos relatos de sobreviventes. Conheci também um pouco do país antes da guerra, com seus pontos turísticos e as belezas que compunham a arquitetura milenar daquele lugar. No decorrer dos meses em que estive imersa naquele mundo, aprendi a ter empatia por aquele povo e por outros que sofrem o mesmo drama. Vi o quanto é difícil ter a sua paz ameaçada a todo instante. Não é fácil conviver com o medo constante de morrer e perder as pessoas a quem se ama. Adentrei tão profundamente na realidade que eu mesma criei que, para mim, ela quase deixou de ser ficcional. Desde aquele ano, passei a ter pânico dos fogos no réveillon e cheguei a ter pesadelos com os meus personagens.
O processo de escrita de Para onde vão as borboletas à noite foi um divisor de águas na vida, não só por me transformar em uma escritora publicada. O processo de escrita desse livro foi doloroso porque me levou a um lugar que eu nunca imaginei visitar: uma guerra. Para onde vão as borboletas à noite me mostrou a fragilidade da existência em um mundo onde vidas valem menos do que bens materiais. Onde a luta pelo poder prevalece sobre qualquer bem-estar.
Quando escrevi esse livro, tinha a ilusão de escrever sobre a última guerra presenciada pela humanidade. Acreditava que a chegada cada vez mais acelerada da modernidade e o avanço da tecnologia trariam luz ao século XXI, fazendo com que os poderosos abandonassem de vez as ideias primitivas. Ledo engano! A Síria ainda sofre as consequências dessa guerra e outros conflitos se espalham pelo mundo. Atrocidades se repetem a cada dia, mortes, destruições, pessoas sem casa são temas que, infelizmente, parecem que nunca deixarão de ser atuais.
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Foto da Capa: ACNUR/B.Hansford