Enquanto a Verdade estava nas mãos de Deus, as angústias, imagino eu, deviam ser bem menores do que hoje em dia. Para tudo se tinha uma resposta. Quando o Iluminismo depositou a Verdade nas mãos da ciência, ela própria, a Verdade, começou a desmoronar. A ciência não tem uma Verdade, tem verdades provisórias. Ela está em permanente busca de respostas que jamais serão definitivas, pelo menos para as questões mais importantes que nos constituem. É da vida, mas não é fácil conviver com isso e muitos sucumbem a uma resposta cabal, seja ela falsa, ilusória ou de fé.
Na coluna anterior, falei de como o falso entrou na arquitetura do século XIX, justamente no período em que ela, a arquitetura, passou a se confrontar com um mundo mais terreno, iluminista. Terminei dizendo que coube ao Movimento Moderno o papel de colocar a arquitetura em dia com os novos tempos (aqueles tempos, bem entendido). Se o falso apareceu pela primeira vez no Eclético, agora a Verdade passava a vestir a Arquitetura Moderna. Convenhamos, verdadeiro e falso são dois assuntos absolutamente inusitados para uma arte que trabalha com a matéria física, que em princípio é o que se vê. Será mesmo?
No parágrafo anterior, me dou conta — e aproveito para ressaltar —, vejo uma boa amostra das relações profundas que a arquitetura tem com as questões do pensamento, da filosofia e da arte. Trago isso aqui porque é cada vez mais comum a corrente que vê a arquitetura como uma atividade meramente pragmática, técnica, de mercado.
Voltando. Para entender um pouco melhor onde entra a questão falso/verdadeiro na arquitetura, convido vocês a passearem pelas admiráveis catedrais góticas da Idade Média. Com apenas pedras talhadas e empilhadas, uma suportando a outra, os arquitetos e artesãos da época criaram obras inacreditáveis, mágicas, ou sublimes, se acrescentarmos os vitrais que pela primeira vez puderam ocupar o lugar de sólidas paredes. Se você inadvertidamente retirasse qualquer uma daquelas pedras, o conjunto desabaria. Todas elas têm uma função essencial na construção do conjunto. Nenhum material dentro daquelas igrejas representa outra coisa se não ele mesmo, seja em sua função estrutural, prática ou como significante artístico. Em arquitetura, isso é tido como coerência entre forma e função, ou, para meu argumento aqui, uma verdade. O que se vê é o que se tem.
Agora imagine a mesma igreja construída com uma estrutura invisível aos olhos, feita em aço ou concreto armado. Invisível porque escondida atrás de superfícies em estuque ou gesso que imitam as pedras e arcos da anterior, mas não cumprem a função estrutural que insinuam. Você diria que as duas igrejas são iguais, mesmo sabendo da diferença com que cada uma foi construída? Aposto que não. Você diria, acredito eu, que a primeira é uma verdadeira obra de arte, a segunda, uma imitação, portanto, falsa.
O Movimento Moderno se propôs a trazer a verdade de volta para a arquitetura, já que consideravam que o que se vinha fazendo já não era arquitetura autêntica. Mas o Movimento não se tornou hegemônico de uma hora para outra. Igrejas neogóticas como a Catedral da Sé (inaugurada em 1954), em São Paulo, ou a Santa Terezinha (1931), em Porto Alegre, por exemplo, foram construídas tardiamente em concreto armado, ambas dentro do conceito de falsas, portanto.
Eu posso desfrutar da decoração das superfícies dessas duas igrejas e mesmo me impressionar com a grandiosidade de suas espacialidades internas, mas não me curvo, como faço nas originais, à genialidade de seus construtores. É como se elas fossem um cenário bem feito para um set de filmagem, para deixar mais claro o que quero dizer. Não estou, com isso, dizendo que elas não tenham valor. Só estou dizendo que há muitas formas de apreciar uma obra de arquitetura. Entendê-las em profundidade, a meu ver, potencializa a apreciação da obra de arte.
Não foi somente a verdade estrutural que o Movimento Moderno trouxe para a arquitetura. Ele também se colocou como expressão autêntica da revolução industrial, técnica e científica de sua época. Alinhou a arquitetura ao zeitgeist. O final do século XIX e as primeiras décadas do XX tiveram um intenso progresso tecnológico que levou a vanguarda artística ao êxtase com a velocidade dos automóveis, com os aviões, arranha-céus e máquinas que passaram a revolucionar a vida doméstica. A Revolução Russa inspirava uma nova maneira de ser e viver em sociedade. Tudo estava em aberto para um novo tempo para a humanidade. Um tempo de progresso e esperança em um mundo racional que, acreditavam, a máquina traria. Era preciso alinhar a arquitetura com a grandiosidade desse novo tempo. A casa já não seria uma casa, mas uma máquina de morar, dizia Le Corbusier.
Na Arquitetura Moderna, você não vai encontrar estuque ou gesso. Vai encontrar materiais ao natural, como eles são em sua concretude. Muito concreto armado, aço, tijolos à vista, madeiras e pedras. O Brutalismo — retratado no recente filme O Brutalista — é uma de suas correntes que ficou muito famosa, mas essa arquitetura é muito mais rica e variada do que isso.
A forma segue a função foi um lema importante para o modernismo. A aparência externa das edificações passou, por dogma artístico, a corresponder às especializações funcionais que cada parte do edifício abrigava. Desde o exterior, podia-se ler o funcionamento interior do edifício. A transparência, propiciada por grandes fachadas de vidro, também veio nesse sentido. É como se a Verdade não admitisse ser velada, dissimulada. Para dar um exemplo do que estou dizendo, trago o Congresso Nacional, onde a concha virada para cima indica o lugar da Câmara dos Deputados, a virada para baixo, o Senado. Os gabinetes de trabalho dos deputados estão nas torres paralelas. As fachadas dessas duas torres são totalmente de vidro. O excesso de luminosidade obrigou a colocação de cortinas internas para evitar a incidência do sol, mas estas não chegam a ferir a intenção de transparência.
A Arquitetura Moderna se libertou das soluções repetitivas e padronizadas que o Ecletismo (ou Historicismo) adotava indiscriminadamente, fosse qual fosse a função do edifício. A imaginação compositiva agora poderia correr solta, desde que amarrada a justificativas estruturais e funcionais e que correspondessem ao princípio de volumes sob a luz. E correu. Exemplos de genialidade inventiva (Frank Lloyd Wright com o Guggenheim de Nova York, por exemplo) e originalidade não faltaram em boa parte do século XX. Soluções inusitadas surgiram para resolver programas que antes tinham mais ou menos as mesmas fachadas de sempre e interiores que adotavam variações sobre o mesmo tema. Os edifícios residenciais, por outro lado, construídos como blocos monofuncionais, criaram problemas, mas isso é assunto para outra coluna.
Com o passar das décadas, quando já poucos se lembravam dos princípios do Movimento, a liberdade criativa, mal interpretada, passou a ser adotada para o projeto de todos os tipos de edifícios. Se antes do modernismo predominava a salutar homogeneidade entre os edifícios, aos poucos, quando a liberdade virou exibicionismo, o caos visual tomou conta de nossas ruas. Edifícios sem importância passaram a exibir malabarismos formais fora de propósito e lugar. O resultado é a cacofonia visual, uma busca de sobressalência que nenhum desses edifícios vai conquistar.
A arquitetura que se vê no mercado imobiliário não difere em nada da disputa diária por protagonismo pessoal que assistimos nas redes sociais. Nesse sentido, a arquitetura está em dia com seu tempo, mas fica a pergunta: é sadia? Faz bem?
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Foto da Capa: Guggenheim.org