“Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade.
Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta. Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos, nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice. Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto, e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou, pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril.”
Fernando Pessoa
Recebi de Jacob Klintowitz o poema de Pessoa por ocasião do Dia do Amigo, com a capa da Time, que foi nosso assunto da semana passada. Jacob é um crítico de arte sensitivo e com o olhar dos mais apurados no Brasil. Tenho muita sorte por sua amizade e generosidade. Conversamos regularmente por WhatsApp e quando vou a São Paulo é uma enorme alegria encontrá-lo. No ano passado, almoçamos e passamos uma tarde inesquecível na Casa do Japão, um lugar simplesmente perfeito. Sentamos na última mesa do restaurante Aizomê, junto à vitrine da cozinha, saboreando ceviches e donburi – o cardápio é todo especial, com apresentação primorosa dos pratos. Largamos a conversar e o horário de almoço encerrou. O garçom veio nos dizer que começariam a arrumar o salão, mas que não nos incomodássemos, podíamos continuar conversando à vontade. Agradecemos e lógico que ficamos.
Jacob estava me contando de quando foi recebido por um comerciante de pérolas em Tóquio, que o apresentou para a família e em seguida serviram um chá com o belo cerimonial e delicados petiscos. Então, ele se preocupou de que o japonês o estivesse tomando por uma celebridade ou alguém de poder no Brasil e tratou de, sutilmente, esclarecê-lo. Ao que ele respondeu saber exatamente quem era Jacob Klintowitz e de como são necessários séculos para formar um escritor. A percepção do oriental é o mesmo que Jacob já me falou várias vezes e eu concordo plenamente: nascemos prontos, mas precisamos desenvolver. “Somos herdeiros de um inconsciente que sabe, de um inconsciente coletivo que traz registrado a história da espécie, de um código genético que remonta à gênesis da vida, de um planeta vivo e de um cosmo dotado de uma existência magnífica (…) é um magma ardente e vivo, detentor de um repertório infinito e matriz da nossa criatividade”, escreveu em A Ressacralização da Arte, um de seus livros que mais amo.
Jacob Klintowitz, desde criança, seguia nessa direção. Aos 10 anos, surpreendia o pai com suas interpretações das leituras que fizera de Balzac e Dostoiévski. Hoje, tem cerca de duas centenas de livros de arte publicados e três mil artigos em jornais e revistas e segue escrevendo e fazendo curadorias de exposições. As duas últimas, na Galeria Frente (SP), com os respectivos livros, foram memoráveis. Candido Portinari: No Círculo de Luz – Na Asa do Sol (maio de 2023) e A Realidade Máxima das Coisas, com os mestres nipo-brasileiros: Manabu Mabe, Tomie Ohtake, Yutaka Toyota, Megumi Yuasa, Tikashi Fukushima, Takashi Fukushima, Flavio Shiró, Tomoshige Kusuno, Jorge Mori, Kazuo Wakabayashi e Tsuguharu Foujita (em junho passado).
Eu adoro ouvir as histórias de Jacob, que vai contando-as como quem tira coelhos da cartola e com um senso de humor delicioso. Ele me faz lembrar o que disse o poeta Affonso Romano de Sant’Anna: quando escritores brasileiros estão falando, seja onde for, mesmo na Sorbonne, diante das estátuas de Descartes e Pascal, logo se instala um clima de descontração, de pura malandragem e o riso é sempre uma constante. Jacob Klintowitz é assim, parece um garoto maroto contando as mais fabulosas histórias, mesmo as mais sérias, o que nos alegra e eleva.
Pois ficamos a tarde toda conversando no Aizomê – e no final tínhamos uma surpresa reservada. O garçom voltou à nossa mesa dizendo que não só o restaurante como todo o centro cultural já tinha fechado há algum tempo e que, lamentavelmente, então, seria a hora de irmos. Acompanhou-nos até a porta e nos dirigimos para a recepção, onde a equipe da casa nos aguardava em formação para se despedir, todos inclinando o corpo, como só os orientais e seus descendentes sabem fazer naturalmente, sorrindo e agradecendo e nos convidando a voltar. Eu mal podia acreditar naquilo e tive de segurar as lágrimas – não é todo dia, definitivamente, que recebemos tratamentos tão carinhosos.
Termino esta coluna por exigência do espaço, pois Jacob é uma fonte inesgotável. Mas presenteio vocês com o seu belíssimo livro (pdf) dos mestres nipo-brasileiros e um trecho de sua apresentação como curador: “Esses artistas viveram uma extraordinária experiência. Foram formados numa cultura milenar onde o silêncio está presente e a linguagem é, ela própria, um novo ser no mundo. Nessa cultura, a arte não quer nos convencer de nada: ela pretende nos oferecer uma experiência perceptiva.
Em regra, o fruidor percebe o momento que passa e é fugidio. O sinal de uma vida permanente, pois, em condições semelhantes, o acontecimento se repete e, finalmente, em si mesmo, o fruidor percebe como esse contato alargou a sua percepção do real. É o universo da expressão mínima. E esses artistas entram em contato com a cultura solar, a vivência brasileira da plena luz. O mundo em que a criação é a expressão máxima.
E, nesse contato com o Novo Mundo, em que o futuro está sempre presente, em que o tempo representa o sonho da liberdade, do prazer e da felicidade, esses mestres artistas elaboram, cada um à sua maneira, o diálogo visual com esse espaço no qual o tempo se prolonga ao infinito”. E ainda um vídeo sobre a exposição A Realidade Máxima das Coisas, em que vocês poderão ouvir Jacob Klintowitz nos contar, com o seu domínio, fluência e delicadeza, sobre este encontro de Oriente e Ocidente, que resultou, por fim, tão benéfico para nós.
Foto da Capa: Jacob Klintowitz e Yutaka Toyota / Leda Abuhab / Divulgação
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