A coluna de hoje é a última a ser escrita este ano e também marca o fim desse ciclo na Sler. Em 2025, me dedicarei mais a outros projetos, deixando de escrever toda semana aqui. Ocasionalmente, vou aparecer na sessão “Zona Livre”, espaço que a Sler abre para eventuais colaboradores. Em ritmo de final de ano e despedida, fujo um pouco dos meus temas habituais e faço aqui uma singela homenagem à cultura e à literatura, tendo como ponto de partida a obra do escritor português Afonso Cruz, autor que vem recebendo bastante atenção aqui em nosso País.
Imagine um mundo onde tudo pode ser comprado. Nessa sociedade distópica, uma menina pede ao pai que compre um poeta numa loja. Esse é o enredo de Vamos Comprar um Poeta, do autor português Afonso Cruz. A narrativa começa com o pedido inusitado da garota: Queria tanto ter um poeta. Podemos comprar um? E, no universo do livro, isso é totalmente normal. A sociedade apresentada é tão obcecada por dinheiro e utilidade que tudo precisa justificar sua existência pela lucratividade. Imagine viver em um mundo assim, no qual o que não gera lucro, como a arte, é descartado. Nesse contexto, a arte vira algo sem importância, e artistas podem ser comprados para ocupar o lugar de animais de estimação. A obra é uma ode à cultura e à poesia, jornada que o autor prossegue em seu mais recente O Vício dos Livros. As citações do presente texto, sinalizadas pelo uso do itálico, são retiradas desses dois trabalhos do autor luso.
Afonso nos lembra do papel essencial da cultura, desmerecida pela sociedade de consumo, afinal, em um mundo onde a regra é gastar e consumir, usar e descartar, a cultura não se gasta. Quanto mais se usa, mais se tem. Os poderosos e aqueles que têm fome e sede de poder temem a cultura, pois ela é realmente uma ameaça. Não me lembro de regimes autoritários que tenham inaugurado a sua governação sem ter perseguido artistas e censurado ou destruído obras de arte.
No entanto, esquecem esses seres que esse mundo que nos rodeia é produto da cultura pois a ficção e a cultura constroem tudo o que somos. Não nascemos com pelos e dentes afiados e garras. Criamos roupas e ferramentas, que são sempre produtos da ficção, da cultura. Mesmo a ciência, tão fria e impessoal, depende da imaginação, afinal, um garfo ou um alicate têm uma utilidade evidente e nesse sentido valerão sempre mais do que um verso, mas um garfo ou o alicate precisaram de ser inventados. E, para isso, foi preciso imaginá-los, criá-los. Quando olhamos à nossa volta e vemos cadeiras, mesas, camisas, escovas, colheres, lâmpadas, canetas, livros, o que estamos a ver não é algo que nasce conosco, é algo que nasceu da imaginação, da ficção, das ideias. Esse mundo que nos rodeia é produto da cultura.
Tampouco os livros seguem esse padrão de consumo febril, até mesmo porque os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor. Em um mundo onde tudo é feito rapidamente, onde tempo é dinheiro, a leitura é um processo lento e muitas vezes ciumento, possessivo. O livro pede a nossa atenção total e exclusiva. Outras atividades não têm tantos ciúmes e permitem-nos realizar várias ao mesmo tempo. Em um mundo em que objetos são planejados para durar pouco e se tornar obsoletos, ainda lemos obras de séculos atrás ou mesmo escritas há milênios.
Porém, os livros não olham somente para o passado, afinal, quando abrimos um livro, disse Graham Greene, abrimos um futuro. Os livros nos formam, pois os livros que lemos construíram-nos, constroem-nos, construir-nos-ão, fazendo com que o genial argentino Borges diga que uma biblioteca é uma autobiografia. Mas os livros também nos transformam, pois a leitura deve resultar numa transformação e um leitor deverá saber que aquele que abre um livro não é a mesma pessoa que o fecha.
Mas a principal qualidade dos livros é nos tornar mais humanos, nos ensinando até mesmo a sermos nós mesmos. Até porque não temos conhecimento daquilo que sentimos; é necessário que o vejamos nos outros para que o reconheçamos. E, concluo esta coluna com um dos trechos que julgo mais belos dos livros que citei, mas que teve a modéstia de ser apenas uma nota de rodapé. Inconformado com a escolha do autor português, fecho a coluna e o ano com ela:
Abrir um livro é abrir pessoas e explorar o nosso próprio mundo através da experiência dos outros. O território inexplorado dentro de nós é acessível através dessa imersão em personagens que nunca fomos e jamais seríamos ou talvez venhamos a ser, e em vidas que nunca tivemos e jamais teríamos ou vidas que serão o nosso destino. As personagens dos livros que lemos são o meio de transporte para o que não somos, ou melhor, para o que somos sem ser. Creio que esta noção é fundamental: ser profundamente o que não somos.
Um feliz 2025, que ele venha com muitos livros!
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Foto da Capa: Paulo Sousa Coelho / Divulgação