Nos últimos tempos, tenho conversado com amigos sobre a dificuldade de conseguir ler como líamos em outros tempos.
Em geral, o relato é bastante parecido: aquele adolescente que devorava livros – gosto dessa imagem de ler como um ato visceral – acabou se tornando um adulto que, ao passar o olho pelas primeiras linhas de um romance, ou se entedia ou dorme.
Acho que todos nós que tivemos o privilégio da juventude envolvida por livros sentimos uma certa falta, pra não dizer inveja, do leitor que já fomos em outras épocas.
Apesar de meus pais não serem intelectuais na forma como hoje pensamos, a minha casa sempre teve livros. Inclusive, o aposento do apartamento que hoje em dia chamamos de “escritório” era a “biblioteca”. Ali, uma grande estante dispunha vários clássicos como Machado de Assis e Honoré de Balzac ao lado de obras que estavam em alta na época, como o livro “O dia do chacal”, de Frederick Forsyth ou “Papillon”, de Henri Charrière.
Na casa dos meus tios-avós, estes sim mais ligado à arte e à cultura (um arquiteto e uma artista plástica), o meu lugar preferido era também a biblioteca. Nos almoços de família aos domingos, eu gostava de dar uma escapada da sala para me refugiar na confortável poltrona baixa onde passava o olho na Folha de São Paulo – achava um charme aquele jornal grande – e onde eu ensaiava algumas páginas de uma das obras de literatura latino-americana que sempre estavam na mesinha ao lado.
Volta e meia eu levava algum destes livros pra casa, talvez até como uma forma de levar comigo um pouco daquela atmosfera erudita, que só anos mais tarde eu percebi que tanto me fascinava.
Aliás, escrevendo sobre aquela época é que percebo o que tanto eu gostava na casa dos meus tios-avós, para além do ar de intelectualidade: o silêncio. Ainda que estivesse toda a família reunida, poder me refugiar naquele escritório me trazia paz, tranquilidade. Silêncio.
Enfim, também tenho um bom tanto de inveja daquele Luciano que tanto conseguia ler livros e mais livros.
E acho que isso não se devia somente a ter tempo para ler, mas também a estar em uma conjuntura menos caótica, com menos notificações, menos apitos e alarmes.
Hoje em dia, vivemos em um mundo em que o silêncio é um privilégio. Muitos de nós, especialmente depois da pandemia, nem conseguiríamos trabalhar sem o celular, sem responder às mensagens que chegam. E quando estamos respondendo a estas demandas, ainda surgem mais notificações: as últimas notícias, o aviso de que alguém escreveu uma mensagem direta no Instagram, uma menção em qualquer outra rede social, o aviso de match no Tinder… Tudo nos traz para o momento presente, nos colocando em posição de resposta o tempo todo.
O problema é que a leitura é um ato profundamente ciumento: enquanto estamos lendo, não podemos dar atenção a outros estímulos em volta. Ou até podemos, mas aí provavelmente estaremos só passando os olhos pelas linhas, precisando voltar duas ou três vezes na frase para apreender minimamente o seu sentido. O livro exige uma relação monogâmica.
Afinal, apesar do que o discurso neoliberal nos faz acreditar, a atenção é um recurso limitado. Não temos como quantificá-la, mas sabemos bem que ao dirigir a nossa atenção a algo, estamos suprimindo-a de outro alvo. Podemos escrever a lista do supermercado parados no sinal vermelho, por exemplo, mas dificilmente conseguiremos elaborar um artigo científico nas mesmas condições. E pior: nos acostumamos tanto com a falsa ideia de que somos todos transtornados, que não nos damos conta que a nossa falta de atenção e hiperatividade é muito mais uma construção social do que um desequilíbrio neuroquímico. Não há psicotrópico que cure a nossa demanda de sermos amados pela lógica da produtividade.
Uma boa forma de entender isso é o mito contemporâneo de que nós sejamos seres multitarefa, ou seja, de que teríamos a possibilidade de recrutar o mesmo tanto de atenção para as mais variadas atividades concomitantes. Sim, a gente pode fazer várias coisas ao mesmo tempo, mas realizaremos todas mal, de forma precária, pela metade. Junte-se a isso uma certa demanda de perfeição a que muitos estamos submetidos e está formado aí o cenário perfeito para estarmos o tempo todo culpados e nos sentindo atrasados ou em dívida.
Prestar atenção – ou “focar”, para os que gostam destes termos da moda – em algo implica a renúncia a olhar para outros estímulos. Suportar a renúncia como um ato voluntário talvez seja um dos últimos recursos que ainda temos em uma época em que tudo nos parece disponível o tempo todo.
Ler, neste sentido, acaba se tornando uma espécie de revolta íntima, a abertura de uma brecha na ensurdecedora e escandalosa rotina em que estamos imersos. Espero que nós, os monogâmicos da atenção, possamos recobrar tão logo possível a nossa voracidade literária.
Foto da Capa: Miniperde / Pexels