“A rainha entrou no calabouço, onde ninguém jamais pôs os pés, e fez uma maçã envenenada. A aparência da fruta encantada era maravilhosa – branca com as faces vermelhas -, se você a visse, ansiaria comê-la. Mas bastaria a menor mordida para levar-lhe à morte.
Assim que terminou de preparar a maçã enfeitiçada, usando de artimanhas, transmutou-se desta vez na forma de uma velha camponesa e partiu para além das sete colinas, até a casa dos sete anões.”
Os Irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm) eram escritores, poetas e linguistas. Naturais de Hanau, no Grão-ducado de Hesse, atual estado de Hesse, na Alemanha. Ficaram célebres por escrever ou registrar histórias infantis que atravessam os séculos. Branca de Neve é uma delas. Publicada em 1812 por eles, recontada e reencantada por Walt Disney, no clássico de animação de 1937, Branca de Neve e os Sete Anões.
Na parcela da população que teve um mínimo de infância, é difícil imaginar quem não conheça a história da jovem princesa, que foge da madrasta má, através de uma densa floresta, e encontra refúgio na casa de sete anões. Acolhida por eles, acaba comendo uma maçã envenenada. Quem lhe oferece a fruta é uma bruxa, sua invejosa madrasta num disfarce ardiloso.
A lápide de uma princesa verdadeira, exposta no Museu Diocesano da cidade de Bamberg e que estava desaparecida por muitos anos, desperta atenção para uma possível base “real” de inspiração para esse “conto de fadas”. A baronesa Maria Sophia von Erthal nasceu em 1725 e cresceu no castelo de Lohr am Main, na Alemanha. A distância é de apenas 50 quilômetros de Hanau, onde viveram por vários anos os Grimm.
Em 1980, um historiador de Lohr am Main, Karl Heinz Bartels, buscou paralelos entre a história da baronesa e o conto de fadas. Assim como Branca de Neve, Maria Sophia tinha uma madrasta. Seu pai casou-se uma segunda vez depois da morte da primeira mulher. A madrasta era conhecida por seu gênio dominador e por favorecer os filhos biológicos que teve com o pai de Sophia.
Entre outras semelhanças, Lohr am Main era conhecida pela produção de espelhos e vidro. Philipp Christoph von Erthal, o pai de Maria Sophia, tinha uma fábrica de espelhos. No museu local, pode-se ver um dos seus espelhos; nele a inscrição: “Amour propre” (amor próprio, em tradução do francês). – Espelho, espelho meu…
Na região, há uma mina abandonada, e é preciso atravessar sete colinas para chegar até ela, como o percurso até a casa dos sete anões do conto. Também há uma floresta, que no passado era temida por ser antro de salteadores. Bartels também sugere uma associação da altura dos mineiros – o tamanho das minas só permitia que crianças e anões lá trabalhassem. Usavam capas para se proteger da queda de pedras e terra nos túneis.
A baronesa alemã que pode ter servido de inspiração à personagem Schneewittchen (Branca de Neve), no entanto, não casou com nenhum príncipe. Cega desde a juventude, morreu solteira, aos 71 anos. Em um convento, onde se dedicara à vida religiosa.
Algumas fontes afirmam ainda que ela era reconhecida por sua bondade, em especial para com as crianças, que muitas vezes a rodeavam e apresentavam um aspecto envelhecido devido aos trabalhos extenuantes a que eram sujeitas à época. Talvez aí uma outra inspiração para as figuras dos amigos de baixa estatura.
Se há ou não alguma relação entre uma história e outra, a verdade é que tudo que se conta sempre será uma versão e a própria História não deixa de ser ficção a serviço de um interesse qualquer. Não necessariamente mal-intencionado.
Por muito tempo, os contos de fadas foram questionados, alegava-se que eram irreais, com tramas pesadas, brutais. No seu livro, “Psicanálise dos contos de fadas”, Bruno Bettelheim (1903-1990) defende que essas ficções ajudariam as crianças a recriar internamente seus próprios dramas pessoais, permitindo que se imaginem na história e aprendam a lidar com seus conflitos interiores. Seus medos são confrontados, ajudando a superar obstáculos para o seu desenvolvimento emocional.
Para o autor, a leitura dos contos de fadas propõe e, de fato, desenvolve na criança a capacidade de fantasiar. Os enredos dialogam com seus pavores internos, suas ansiedades e seus ódios, seja para vencer sentimentos ruins, de rejeição e de inferioridade, enfrentar conflitos edípicos, portar-se diante da rivalidade com irmãos. Aliviam as pressões geradas por esses problemas; incutem coragem na criança, mostram a possibilidade de possíveis saídas; consolam. Premiam com um “final feliz”, o que para alguns adultos seria utópico, falso. O fato é que podem render coragem à luta por valores amadurecidos e a uma crença positiva na vida.
Nesse início de ano de 2025, em meio a histórias de relações familiares interrompidas por bolos envenenados, surpreende também a demonstração de imaturidade e malformação de caráter em outras notícias. Discursos que flertam com o abuso de poder. O descontrole e o incentivo a manifestações que liberam o ódio nas mídias, a mentira a serviço de interesses ideológicos, as ganâncias espúrias. Perversão travestida de liberalidade. Bruxas com cestos de frutos vistosos, falsos brilhantes. Lobos em pele de cordeiro. “Crianças” que não se desenvolveram emocionalmente. Pode não parecer, mas há nisso tudo uma conexão.
É preciso contar histórias, recuperar contos de fadas. Não os deixar de lado, não temer aqueles que expõem atrocidades, para que ninguém as desconheça, nem as esqueça. É preciso aprender a ter coragem para reconhecê-las e enfrentá-las. Já se disse que a existência pode ser reinventada e salva pela arte.
Há algo muito emblemático por esses dias, na história dessas Fernandas, mãe e filha, que apresentam, não só a nós, mas ao mundo, a heroica Eunice Paiva. Como uma mãe que ensina a filha a aprender a viver contando histórias, com coragem, elas representam a continuidade e a fluidez perene da arte. E do amor.
“Bravo” – diz a mãe, Montenegro, dirigindo-se à filha. Incentivando-a e encorajando-a sempre.
Apego-me ao reconhecimento dado à arte que subverte a perversão que sempre nos espreita. Termino essa crônica agarrando-me a isso e fazendo coro à filha, a Torres: “A vida presta”.
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Foto da Capa: Acervo do Autor