Em 17 de abril, foi entregue em sessão do Senado o anteprojeto de reforma do Código Civil, de 2002, que visa a alteração de mais de mil artigos texto original, e por isso vem sendo chamado de Código Civil de 2024. Ele foi elaborado por uma comissão de 38 juristas renomados, cujo presidente foi o Ministro Luís Felipe Salomão e o vice-presidente foi o Ministro Marco Aurélio Bellizze, integrantes do Superior Tribunal de Justiça.
Esses juristas analisaram 280 sugestões da sociedade e houve várias audiências públicas, com o apoio da Consultoria Legislativa do Senado.
Com algumas exceções, o anteprojeto pouco tem de inovador, essa atualização visa em grande parte refletir no Código Civil o entendimento jurisprudencial e doutrinário sobre vários assuntos. Segundo o professor Flávio Tartuce, relator do projeto, e um dos nomes mais respeitados na área do direito civil, no país, esse anteprojeto reflete a visão majoritária do direito civil no Brasil e apresenta o que tem de melhor no mundo do direito brasileiro.
Ele deverá ser discutido pelo Senado e também pela Câmara dos Deputados, onde provavelmente ocorram diversas sugestões e até mesmo proposições em sentido contrário a alguns aspectos. Além disso, depois de aprovado pelas duas casas ainda passará pelo crivo presidencial, que poderá sancionar ou vetar o projeto de lei. Creio que os debates mais ferrenhos acontecerão na Câmara dos Deputados, não só pelo maior número de integrantes, o que gera muitas ideias para todos os lados, mas também por seguir uma linha, especialmente no direito de família, mais contemporânea, alinhada com o mundo atual mais desenvolvido, o que muitas vezes conflita com pensamentos mais conservadores, principalmente por motivações religiosas.
Conforme divulgado pela Agência Senado, são essas as principais mudanças:
Sobre o direito de família
– O conceito de direito família será ampliado em razão da previsão da família conjugal, entendida como aquela formada por um casal, e do vínculo não conjugal, que é aquele formado por mãe e filho, ou irmã e irmão, que será chamado de “parental”. O termo “entidade familiar”, a meu ver algo meio estranho e sinistro, será substituído pelo termo “família”, o que me parece bem mais adequado. O termo “companheiro” será substituído por “convivente”, e o termo “poder familiar” por “autoridade parental”.
– Será reconhecida a “Socioafetividade” quando a relação for baseada no afeto e não no vínculo sanguíneo.
– Ocorrerá a “Multiparentealidade” quando houver a existência de mais de um vínculo materno ou paterno em relação a um indivíduo.
– Quando o pai se recusar a fazer o exame de DNA, haverá o registro imediato da paternidade a partir da declaração da mãe.
– Haverá o reconhecimento da potencialidade da vida humana pré-uterina e da vida pré-uterina e uterina como expressões da dignidade humana.
Sobre o casamento e divórcio
– Será legitimada a união homoafetiva, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2011, e acabarão as menções a “homem e mulher” nas referências a casal ou família.
– Haverá a previsão do divórcio unilateral ou da dissolução unilateral da união estável que podem ser solicitados por uma das pessoas do casal, sem a necessidade de ação judicial. O pedido deverá ser realizado no cartório onde foi registrada a união, e o cônjuge será notificado e terá um prazo para atender.
– O regime de bens do casamento ou da união estável poderá ser alterado em cartório, por exemplo, o regime da separação total de bens poderá ser alterado para o regime da comunhão parcial de bens. Pelo atual Código Civil, isso somente poderia ocorrer com autorização judicial.
– Alimentos gravídicos (pensão) serão devidos desde o início até o fim da gestação.
Sobre a reprodução assistida e a doação de órgãos
– É proibido o uso de técnicas reprodutivas para criar seres humanos geneticamente modificados, embriões para investigação científica ou para escolha de sexo ou raça.
– É vedada a comercialização de óvulos e espermatozoides, e não será reconhecido o vínculo de filiação entre o doador e a pessoa nascida a partir do seu material genético.
– É dispensada a autorização familiar para a doação de órgãos quando o doador falecido tiver deixado, por escrito, permissão para o transplante. Se não houver manifestação prévia do doador, a autorização poderá ser dada por familiares.
– A pessoa tem o direito de indicar antecipadamente quais tratamentos de saúde deseja ou não realizar, caso fique incapaz no futuro.
– É proibida a “barriga de aluguel”, mas será autorizada a barriga solidária, desde que a gestação não seja possível em razão de causa natural ou em casos de contraindicação médica.
Sobre os animais
– Eles serão considerados seres capazes de ter sensações e emoções, e terão proteção jurídica própria.
– Haverá o dever de reparação por maus-tratos e indenização a quem sofra dano moral por problemas com seu animal de estimação.
– As despesas com a guarda e manutenção de animais de estimação podem ser compartilhadas entre ex-cônjuges.
Sobre os bens
– Os cônjuges deixam de ser herdeiros se houver descendentes (filhos, netos) e ascendentes (pais, avós). Nessa hipótese, apenas esses serão considerados herdeiros.
– As doações de pessoa casada ou em união estável para amantes podem ser anuladas pelo cônjuge ou por seus herdeiros até dois anos após o fim do casamento.
Sobre a usucapião
– A declaração da aquisição da propriedade por meio da usucapião poderá ser requerida diretamente ao cartório pelo possuidor do imóvel, e não mais somente ao juiz.
– Para combater a grilagem, o direito do reconhecimento da propriedade em razão da usucapião só poderá ser exercido uma única vez. Vale salientar que hoje não existe esse limite na lei.
– A aquisição da propriedade de imóvel urbano, por meio da usucapião urbana, poderá ser exercida por quem ocupar moradia de até 250 m2, em área urbana por cinco anos ininterruptos e sem oposição.
– Sobre a usucapião familiar, quem exercer a posse de um imóvel de até 250 m2, que dividia com ex-cônjuge ou ex-convivente, que saiu do local por dois anos ininterruptos, terá sua propriedade integral.
Sobre dívidas e prescrição
– Proibida a penhora de imóvel de devedor e sua família ser for o único bem que possuírem.
– Moradia de alto padrão pode ser penhorada em 50%, a outra metade permanece na posse do devedor.
– Fica reduzido o prazo geral de prescrição de 10 para 5 anos.
– Os contratos não podem prever taxas de juros por inadimplência superiores a 2% ao mês.
Sobre as empresas
– É reforçada a ideia de liberdade contratual, sobretudo nas contratações que envolvam partes em igualde de condições.
– As empresas estrangeiras (sociedades estrangeiras) deverão ter sede e representantes no Brasil para poder atuar no país.
Sobre o direito digital
– Importante inovação no Código Civil, com a criação de normas referentes ao Direito Digital, estabelecendo direitos e proteção para as pessoas no ambiente virtual.
– Garante a remoção de links em mecanismos de buscas de conteúdos que tragam imagens pessoais íntimas, pornografia falsa, e crianças e adolescentes.
– Estabelece a possibilidade de indenizações por danos sofridos em ambiente virtual.
– As plataformas digitais devem responder civilmente pelo vazamento de dados e deve adotar mecanismos para verificar a idade do usuário.
Sobre o patrimônio digital
– Definição de patrimônio digital como os perfis e senhas e redes sociais, criptomoedas, contas de games, fotos, vídeos, textos e milhas aéreas.
– Os sucessores legais podem pedir a exclusão ou conversão em memorial dos perfis em redes sociais de pessoas falecidas.
Sobre a identidade e assinatura digital
– Estabelece a regulamentação do uso de assinaturas eletrônicas, e reconhecimento da identidade digital como meio oficial de identificação dos cidadãos.
Sobre inteligência artificial
– É obrigatória a clara identificação do uso de IA.
– Exigida a autorização para criação de imagens de pessoas vivas e falecidas por meio de IA.
Como dito acima, esse anteprojeto será debatido pelas duas casas do Congresso Nacional, e embora as modificações propostas pela comissão de juristas representem o melhor entendimento jurídico sobre tais temas e, em muitos casos, as modificações representem o próprio entendimento do STJ e do STF, tenho o receio de que políticos mais conservadores venham a criar muita discussão e dificuldade principalmente no âmbito do direito de família, e venham a propor e até mesmo conseguir que virem leis artigos que depois obviamente serão considerados inconstitucionais pelo STF, se violarem algum princípio constitucional, como, por exemplo, foi o caso do artigo 1.790 do atual Código Civil, que foi julgado inconstitucional por estabelecer diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros.
Foto da Capa: Presidente do Senado recebe proposta de texto para o novo Código Civil – Foto de Pedro Gontijo / Agência Senado
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