O documentário Lupicínio Rodrigues, Confissões de um Sofredor, me fez pensar sobre a base material da cultura. Tem direção de Alfredo Manevy, um paulista formado em cinema pela USP. Essa é a sua estreia como diretor. A produção é da Plural Filmes e do Canal Curta.
Fomos ver na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, e nem o ar-condicionado estragado num calor dos infernos nos fez arredar o pé da sala. O filme se ancora numa colagem de cenas e áudios colhidos de diversas fontes, resultado de uma profunda pesquisa. Estamos falando de um compositor e cantor que nasceu em 1914. Desde a década de trinta até 1974, ano de sua morte, teve uma centena e meia de canções editadas, além de um outro grande número que se perdeu.
O roteiro se vale como fio condutor de uma entrevista com o Lupi nos anos 1970. A partir dessa própria narrativa da sua vida, acompanhamos as diversas fases pelas quais passou o seu trabalho.
Em determinado momento, há o relato de uma viagem sua ao Rio de Janeiro. Ele, porto-alegrense, nunca morou fora do Rio Grande do Sul. Aqui, embora já fosse conhecido pelas suas composições, era visto mais como um boêmio. No Rio, seu trabalho chamou a atenção nada mais, nada menos do que do maior cantor do Brasil na época, Francisco Alves, “o rei da voz”. O artista passou uma noite ouvindo Lupi cantar e lhe disse que não entregasse essas músicas para ninguém, pois queria gravar.
A indústria do disco era a base material que faltava, em Porto Alegre, para que Lupi pudesse se transformar no que, na verdade, já era: um dos maiores e mais originais compositores da história brasileira. No Rio, o que fazia valia grana. Aqui, eram diversões de um boêmio.
Arthur de Farias, músico e também biógrafo de Lupi, assinala um ponto interessante e certeiro da sua estética: a mistura do samba-canção com o tango. O exagero das suas letras trágicas, “mas enquanto houver força em meu peito/eu não quero mais nada/só vingança, vingança, vingança aos santos clamar”, é a pitada do tango que perpassa a sua obra. Somos brasileiros, mas vizinhos dos países do Prata. A mistura das duas matrizes foi muito bem manejada por ele.
A originalidade das composições de Lupi, seja na sua própria interpretação, que tem como inspiração o canto sem exageros de Mário Reis, seja na voz dos maiores e das maiores intérpretes do país, como Jamelão, Linda Batista, Elza Soares, João Gilberto, Caetano, Bethânia, Gil, Gal, Paulinho da Viola, Arrigo Barnabé, Arnaldo Antunes, Nelson Coelho de Castro e a turma do Coompor Canta Lupi, entre outros e outras, atravessou décadas, virou o século e o milênio. E, como mostrou esse recente documentário premiado como o “Melhor Filme do Público” no Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, em Lisboa, segue soando e fazendo jus à própria avaliação de Lupi sobre a recepção de sua obra: “Como é que existe alguém/ que ainda tem coragem de dizer/que os meus versos não contêm mensagem/são palavras frias, sem nenhum valor?”
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Foto da Capa: Reprodução do Youtube