Desde que minha mãe me colocou numa aula de violão aos 8 anos de idade, a música tem um capítulo especial na minha vida, ou na minha atenção. Até hoje não sei – e já é tarde para perguntar – por que apenas eu e minha irmã fomos para as aulas de violão entre os quatro irmãos.
De início, eu gostava. Mas, com o tempo, ir para a aula e ver a galera indo pro campinho de futebol começou a me incomodar. Não era só pelo tempo da aula, era pela aula. A professora, figura conhecida ali pelo bairro Menino Deus, em Porto Alegre, era uma boa professora, exceto pela falta de jeito com o conteúdo para pequenos aprendizes.
O meu repertório infantil era repleto de canções dor-de-cotovelo, tipo Dolores Duran, Vicente Celestino… Ou marchinhas de Ary Barroso (sorte que a Xuxa ainda era criança nessa época). Imaginem o meu grau de conexão e emoção com o repertório. A emoção mais forte que tive foi quando, certa feita, a professora me apresentou uma música cuja letra dizia que ‘fulano tinha caído na bebedeira’.
Eu acho que mal dormi naquela noite a imaginar o que seria a tal ‘bebedeira’. Sonhei com um buraco fundo e escuro que ninguém conseguia me tirar. Uma bebedeira assustadora. Não descobri tão cedo o significado real, mas fiquei tão preocupado com o fulano, que estou aqui, mais de 50 anos depois, me lembrando do coitado.
O campinho de futebol venceu, mas não por muito tempo. Poucos anos mais tarde, já adolescente, ressuscitei o violão para as rodas com os amigos. Depois virou uma banda, shows… virou a banda do Opinião, animando as noites de sexta e sábado com puro pop rock anos 70/80. Corta. Coloca o cabresto, digo, a gravata.
Desde o ano passado, resolvi atender um desejo daquela época. Estudar piano. Comecei mal. Julgando que as décadas de exercício com os músculos dos dedos da mão ao violão fossem ajudar no teclado do piano, quebrei a cara. Era um raciocínio de mané mesmo, como se andar de bicicleta ensinasse a pilotar moto. Porque o piano é isso, é uma moto, é um carro, um caminhão… é uma orquestra inteira. Eis o problema, eis a solução.
No piano, não é preciso que alguém cante ao lado, ou, pior, que você mesmo se obrigue a fazer isso. Não é preciso um baixo, guitarra base ou solo, bateria… sax, trompete, seja lá o que quiser colocar. Basta largar os dedos e tudo se cria, o mar se abre como se Moisés ordenasse.
Tudo tem custo, sabemos. Você se sente uma criança tentando andar. E quando cai dá vontade de chorar. Mas, também como as crianças, é uma alegria só conseguir dar os primeiros passos se equilibrando na ponta dos dedos. Romper a barreira do zero, da total incapacidade, para um sopro de autonomia. Um (com)passo de cada vez. Para minha sorte, tenho a tido a gentil e paciente Nayane Nogueira, a talentosa pianista e professora que não me deixa trocar Liszt por qualquer dor-de-cotovelo. E segura as minhas mãos pra eu não esmorecer e nem cair enquanto vou saltitando entre as teclas brancas e pretas.
Estou tão animado que já vou te convidar para o meu primeiro concerto. Ele não tem dia. Nem ano tem ainda. Mas um dia ele vai acontecer. E, quando essa hora chegar, tenha certeza de que será o meu dia de cair na bebedeira.
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Foto da Capa: Gerada por IA