Ouvir de uma professora durante a graduação de psicologia que ser uma mulher negra é um ato político foi, no mínimo, estranho. Não imaginava ouvir essa expressão de uma mulher branca, que praticava psicologia social numa universidade particular.
Que sorte a minha!
Professores salvam vidas. Agradeço aos que tive em toda a minha vida, pois através deles me constituí como sujeito pensante, tive consciência da minha negritude e obtive conhecimento técnico para salvar outras vidas através de atendimentos psicológicos e letramento racial.
Nada mais justo, no mês da consciência negra, falarmos sobre os afetos alegres, sobre a essência de um povo que não se apaga e que pratica o impossível a todo momento. Estamos vivos e muitas vezes isso parece impossível, não é mesmo? Refletir sobre a beleza da negritude me fez pensar em tantas coisas prazerosas, então espero que esta sensação reverbere entre os leitores e se torne um hábito.
Gastamos muita energia dizendo não a quem somos e por consequência não reconhecemos a nossa alegria, sorriso largo e perfeito, inteligência e beleza. Sim, meu texto é romântico! Utilizo a licença poética em prol dos meus irmãos e irmãs. Através das minhas palavras torno pública uma herança que, apesar de não trazer privilégios reconhecidos numa sociedade capitalista, nos dá algo intangível, um olhar diferente em relação ao todo.
Famílias de pessoas negras trazem algo que a sociedade precisa aprender para sobreviver, a coletividade. Noções de práticas do pensamento coletivo deveriam ser disseminadas para que cada um pense em suas atitudes, fomentando a proteção do indivíduo e dos grupos. Promovendo assim a redução do impacto negativo no meio social. Vivemos justamente o contrário disso, coletividade é inovação.
E a alegria desse povo, gente? Em África, o que dita o ritmo de todas as coisas é o tambor. A cadência deste instrumento vai além do som, ele nos leva e nos traz formando caminhos, nosso tempo é diferente. A música é inerente à nossa cultura, os cânticos nos elevam e nos aproximam das divindades lindamente. Cultuamos forças da natureza, aprendemos com os mais velhos como utilizar folhas e ervas para a prevenção, proteção espiritual e cura de doenças.
Nós temos aptidões para artes, esportes, canto, ciência… Ô, povo rico!
Não posso deixar de citar a capacidade intelectual. Desenvolvemos técnicas agrícolas e de organização social muito concretas, contribuímos para a ciência e construímos o Brasil com estes conhecimentos.
Somos brasileiros, já nos distanciamos de nossos antepassados africanos, somos uma mistura de potência preta e abuso colonial, porém a cor escura de nossa pele traz a certeza de que somos filhos de África e que isso nos faz diferente. Diferença que não nos diminui, pelo contrário, mostra que a força da coletividade e do pensamento horizontal salvam vidas.
Desejo que neste novembro possamos celebrar também nossa beleza, riqueza e integridade. A história vai além do que se aprende na escola, recomendo a leitura das obras de Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, a coleção Feminismos Plurais, Carolina Maria de Jesus, Neusa Santos Souza, por exemplo, para que possamos ir além do que a sociedade espera, pois somente enquanto indivíduos conhecedores e questionadores nos tornamos negros e conseguimos desfilar o nosso corpo político promovendo atos, protegendo nossos quilombos e propondo o futuro.
Celebrando a beleza de ser negro, dedico cada palavra aos que vieram antes de mim, pois veio deles a autorização para praticar a escrita e a genética de lutadora que sou para realizar o sonho dos meus ancestrais, os meus sonhos e os sonhos do meu filho.
Jennifer Cereja é mãe, ativista, psicóloga e palestrante. Trabalha em consultório, apaixonada pela clínica e os atravessamentos que a prática proporciona. As escrevivências, como diz Conceição Evaristo, tem o olhar afrocentrado sempre considerando o indivíduo como protagonista de sua história.
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Foto da Capa: Freepik