A beleza tradicionalmente está associada à simetria.
Pelo menos no ocidente, somos culturalmente ensinados a achar belas as formas que nos provocam um apaziguamento do olhar, um descanso do nosso julgamento estético. Ou seja, ainda que possa nos interessar, tendemos a não achar bonito aquilo que é agressivo ao nossos olhos.
O que não quer dizer que não sejamos afetados esteticamente pelo que não é belo. Todos já sentimos o tremor interno que nos causa a imensidão do mar revolto à noite, por exemplo, ou o deslumbre pela pequenez de nossos frágeis corpos contrastados com o infinito de um céu estrelado.
Mas em um grupo de pessoas escolhidas aleatoriamente, tendemos a achar bonitas aquelas que apresentem os traços mais simétricos: olhos à mesma distância do nariz, lábios que não destoem do restante da feição, dentes sem imperfeições aparentes.
Veja bem, caro leitor, que estou falando de apreciação de beleza, e não de desejo sexual.
Porque, quando entramos no campo do erotismo, aí vale tudo. Inclusive, não é incomum nos atrairmos sexualmente justamente por aquele traço do outro que não condiz com a simetria esperada: a cicatriz na bochecha, o dente levemente torto, as sardas no rosto. Por sorte, o nosso inconsciente não tem um senso clássico de beleza.
Nos apaixonamos pela assimetria porque é aí que reside a nossa humanidade.
Este desencontro entre o que nos parece belo e o que nos atrai sexualmente inclusive pode produzir uma certa angústia, uma vez que as celebridades e pessoas famosas que sempre invejamos encarnam os ideias de simetria. Como se os nosso olhos fossem culturalmente acostumados a se tranquilizar com uma imagem que talvez nem sequer desperte algo em nossa economia erótica.
Podermos nos aproximar mais do que nos desperta desejo e silenciarmos um tanto o que socialmente é tido como belo é um processo emancipatório que passa por um mergulho reflexivo para dentro de si – o que não é algo simples, especialmente em tempos como os que vivemos, tempos em que a autorreflexão íntima está sendo substituída por uma alienação aos padrões neoliberais de beleza – que, via de regra, trazem consigo o traço da assepsia.
Associada à essa dificuldade de nos perguntarmos pelo que desejamos, também há um outro elemento que torna esta questão ainda complexa: o belo parece estar em baixa nas redes sociais. Sei que esta afirmação pode causar estranheza no leitor, por isso, explico com um exemplo bem cotidiano.
Uma boa forma de entender isso é trazendo à discussão os famosos filtros de Instagram.
Se no início os filtros “melhoravam” a aparência de alguém, recobrindo manchas e marcas de pele, “filtrando” pequenas assimetrias da face e aplicando outros retoques, hoje eles deformam a aparência, e não a conformam a um ideal de beleza.
Aquelas mesmas celebridades que antes tomávamos como referências de beleza parecem estar cada vez mais adquirindo formas estranhas, especialmente depois que começou essa moda das harmonizações faciais.
A leveza dos traços vai perdendo espaço para as linhas embrutecidas, as proporções clássicas caem em desuso frente a dimensões alienígenas de bochechas e lábios, a passagem do tempo vai sendo apagada por uma testa completamente lisa, que não existe nem sequer em uma criança.
Como era de se esperar, as próprias cirurgias estéticas também foram por este caminho: não se almeja mais o belo no sentido da simetria das formas, mas algo diferente, o chamado padrão. Não estamos mais mirando a beleza como simetria, mas a produção de um padrão não-humano de aparência.
Infelizmente, sempre se encontrará um médico ou um ortodontista disposto a deformar o rosto de um paciente para que este se sinta mais parecido com aquele filtro do Instagram. É triste, mas parece que o debate ético a respeito destes procedimentos ainda não ganhou o palco necessário, ainda não parece que estejamos levando a sério os efeitos de tais cirurgias na imagem corporal daquele que se olha no espelho e não vê ali um humano, mas um ciborgue vacilante entre o orgânico e o sintético.
Ironicamente, estas cirurgias produzem justamente o contrário da harmonização: ao se dissociarem das proporções e dimensões a que estamos habituados, esta dita harmonização só faz sentido se tomarmos como padrão aspectos que não são humanos. No fim das contas, estes procedimentos criam um molde não-humano, deformam os rostos dentro destes limites e então os fazem simétricos. Mas insisto: é uma simetria dentro de medidas que não encontramos na natureza.
Repito: o padrão – e sabemos como as redes sociais são importantes na subjetivação contemporânea – está cada vez mais dissociado da beleza estética. As bocas infladas e os queixos de super-homem que hoje tanto vemos por aí não existem na natureza, não são versões “aperfeiçoadas” – são alienígenas, como se os procedimentos nos fizessem menos humanos.
O que gera situações bastante curiosas de pessoas que entendemos dentro do padrão (barriga lisa, queixo quadrado, seios em formato de bola de tênis), mas que não são propriamente bonitas. Uma desumanização dos corpos a ponto de, às vezes, dificultar capacidades que nos são tão corriqueiras, como no exemplo das lentes dentais que deformam a boca e dificultam a fala, como vimos em alguns participantes do BBB deste ano.
Cúmulo da insatisfação, o padrão contemporâneo não presta mais contas à beleza, mas à alguma outra coisa que, sinceramente, não sei nomear. Talvez a necessidade de causar impacto nas redes, o que gera engajamento? Talvez. De toda forma, por se tratar de aspectos não-humanos, produzem uma insatisfação infinita, tendo em vista que nenhum exercício ou dieta será suficiente para atingir aquele corpo padronizado.
Neste sentido, esta difusão atual dos procedimentos estéticos que traduzem o padrão em aspectos não-humanos é também expressão da lógica neoliberal: é justamente a manutenção permanente da insatisfação, especialmente na sua versão turbinada pelas redes sociais e pelo culto às celebridades.
Foto da Capa: Luisa Sonza – Reprodução Youtube/Instagram