É um conto de Borges – só que ao contrário. Melhor: é uma história escrita por um autor inventado chamado Jorge Luis Borges Borges (criado pela imaginação do próprio escritor argentino, evidentemente) como uma espécie de contraponto distópico d’A Biblioteca de Babel, conto que o Borges de verdade escreveu em 1941. O título seria A Biblioteca de Belzebu, para não perder a referência.
Ao contrário da Biblioteca de Babel, a Biblioteca de Belzebu não é um lugar sagrado que guarda um número infinito de livros, mas um recinto maligno, opressivo, onde as piores conspirações para desestabilizar a civilização são tramadas em segredo. Nesse universo borgiano invertido, os bibliotecários são sórdidos e dissimulados, e os livros que eles protegem conduzem os leitores às ideias mais perigosas já produzidas pela Humanidade. Para impedir que essas ideias escapem para o mundo real – com consequências sempre imprevisíveis – é preciso criar uma lista (infinita) de livros proibidos, perseguir bibliotecários, trancar as portas das bibliotecas, maldizer escritores.
Enquanto você me lê, essa história vai sendo escrita. Não por um ficcionista, infelizmente, mas pelo noticiário. O que estamos assistindo agora é menos espetacular do que uma fogueira em praça pública, mas não menos assustador. Os ataques acontecem em contextos de democracia e liberdade de expressão – à vista de todos e cobertos de “boas intenções”.
Nos últimos meses, aqui nos Estados Unidos, a lista de livros “contestados” (“challenged”, em inglês) ou banidos não para de crescer. Uma associação de bibliotecas rastreou nada menos do que 1.597 títulos em 2021 – o número mais alto desde que a organização começou a rastrear proibições, há 20 anos. São obras consideradas indesejáveis porque abordam assuntos como sexualidade, identidade de gênero, racismo, feminismo… Ou porque têm autores já mortos que tratam de temas sensíveis de forma considerada hoje inaceitável. A lista de livros contestados em 2022 inclui clássicos como O Sol é Para Todos, O Conto da Aia, O Apanhador no Campo de Centeio, Maus e até Harry Potter, além de autores e títulos pouco conhecidos.
No meio desse fogo cruzado, uma atividade considerada até pouco tempo como absolutamente segura – ou mesmo tediosa. Quando os bibliotecários, em meio a ameaças de demissão e processos por permitirem acesso a livros “condenáveis”, começam a abandonar seus empregos porque o ofício se tornou insuportável (a notícia foi publicada no início do mês no New York Times) é porque Belzebu, e não Borges, está no comando.
No Brasil, as notícias só não são mais terríveis porque se lê tão pouco que aparentemente é desnecessário se dar ao trabalho de proibir livros ou perseguir bibliotecários – embora não sejam excepcionais casos como o do colégio paulista que mandou suspender a leitura de uma versão em quadrinhos do diário de Anne Frank. Mas sempre pode piorar. Na semana passada, ficamos sabendo que, entre 2015 e 2020, o país perdeu pelo menos 764 bibliotecas públicas. Já as vendas de livros, em 2021, recuaram 32% em relação a 2013. Livros, melhor não lê-los.
A Biblioteca de Belzebu, o mundo onde os livros são amaldiçoados ou ninguém consegue chegar perto deles, tornou-se a última trincheira das guerras culturais do século 21. Enquanto isso, a Biblioteca de Babel, aquela que Borges chama também de “Universo”, permanece viva e vibrante, apesar dos ataques constantes. No conto, o escritor argentino explica por que:
“A Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o Universo, com seu elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser obra de um deus.”
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