Se temos uma biblioteca e um jardim temos tudo. Cícero
A inspiração deste texto partiu da leitura que fiz aqui na Sler do artigo de Carlos André Moreira “50 livros que me fizeram quem sou” (Sler, 20/6 e 27/6). Ele, como eu, reconheço que “boa parte de quem sou vem dos livros que li”. Ele elegeu o número 50 porque ele estava completando essa idade, e como é tradição de seus textos; eu fiz uma lista de 70 livros sem critério algum, a não ser o de mostrar os temas que considero importantes para qualquer professor conhecer para escrever ensaios ou dar uma aula com uma visão ampliada do campo social. Como fez Moreira, pela extensão, eu tive de dividir em três partes: ele selecionou obras de ficção; aqui eu listo obras de não ficção, certo de que isso contribuirá para professores-autores terem ideia do que considero uma biblioteca para ensaístas.
Esta é uma seleção que não difere da biblioteca de qualquer outro professor porque revela as escolhas que fiz no caminho de construção do meu pensamento e que me levou a ser um autor de ensaios. Olhando agora de forma geral, eu diria que, se eu fosse um médico, eu seria um “clinico-geral”. O mapa de autores e temas que fiz aqui para professores é do campo das Ciências Humanas. São autores e temas que acompanho desde os anos 80, alguns obra a obra. Fica aqui a primeira dica: procure escolher autores que lhe sirvam de apoio teórico, que você se identifique e acompanhe sua trajetória intelectual lendo seus livros. Não se contente apenas com uma obra e nem se preocupe em deixar autores de fora: não se pode ler tudo, então leia o possível. Livro é diferente de parente: dá para escolher. Tenho todas as obras de Paul Virilio, as li e ainda fico fuçando na internet para ver se descubro alguma novidade. Você logo encontrará os seus autores preferidos e poderá ir atrás de suas obras. Fica aqui a segunda dica: invista numa boa biblioteca. Não adquira apenas durante o curso de graduação, persista na ida a livrarias e bibliotecas, vendo a atualidade da produção dos campos que lhe chamam a atenção. E depois, não esqueça de colocar em seu testamento o destino. Uma biblioteca, uma escola, sei lá. Vai lá que um parente resolva vender a quilo parte do que foi sua trajetória intelectual. Biblioteca é um patrimônio. Agradeço a Moreira que tenha compartilhado em seu texto um pouco dos autores que o levaram a ser o que ele é – o notável escritor que acompanhamos nas páginas de Sler, que faz ironia fina e análise como poucos – e espero estar à sua altura com esta relação.
Livros de formação:
Todo pesquisador tem aqueles livros que considera essenciais em sua formação. Eles deram a visão, o modelo, o raciocínio ou simplesmente o olhar que você queria ter ‘‘quando crescer”. Disse que não há mal algum, aliás, é desejável ler autores e se inspirar neles. Eis aqui os meus autores e obras de formação:
1. Guerra Pura, de Paul Virilio (Brasiliense, 1984). Eu já disse que sou um péssimo leitor de literatura, que só li na educação básica as obras literárias de autores que os professores mandavam. Foi na universidade que comecei a ler e escolher os livros que me interessavam e do campo das Humanidades. Quando você ainda não tem dinheiro para comprar os livros, você chega nas estantes da biblioteca da faculdade e simplesmente passeia entre elas até encontrar algo que chame sua atenção. Você para, leva o livro para a mesa e fica… lendo. Eu fazia isso na UFRGS, mas também ia muito à biblioteca da PUC fazer passeios… estantísticos! Entre as estantes. Tipo “rato de biblioteca”, ainda que a expressão me seja meio ofensiva. Esse autor foi o primeiro que acompanhei as obras. Eu seria um stalker literário? Perseguir as obras de autores se tornou meu método de formação. Iniciei por ele depois que o li na disciplina de filosofia da Professora Carolina, a obra Guerra Pura. Para um aluno de primeiro semestre, foi uma revelação. Não apenas porque era diferente dos livros das outras disciplinas, mas pela perspectiva de análise que combinava filosofia, urbanismo e os problemas contemporâneos para mostrar a implosão psíquica do mundo numa combinação da análise política, social e econômica nos anos 80. Ele introduzia novos conceitos como máquina de guerra e o questionamento de coisas sagradas como a tecnologia. Eu sabia que um dia eu queria escrever com esse tipo de perspectiva, de ser capaz de criticar o que todos acham normal. Li tantas vezes que ele está com as páginas caídas. E ainda leio.
2. Partidos Comunistas – paraísos artificiais da política, de Jean Baudrillard (Rocco, 1978). Já não me lembro qual foi o primeiro livro que li deste autor, se este ou A sombra das maiorias silenciosas (Brasiliense, 1985). Acho que foi este porque eu me lembro do conflito interior que me provocou. Eu vivia o contexto universitário dos anos 80, onde o pensamento dominante era de esquerda e que tinha a sua expressão política no PT consagrada à defesa das classes populares que surgiam com os novos movimentos sociais. Então, como compreender as ideias de um autor que igualava o simbolismo de práticas de direita e esquerda? Ele criticava a esquerda, o PC de sua época, francês, burocrático e arrogante. Hoje vejo características da esquerda que ele criticava no passado francês, na que chegou hoje ao poder no Brasil. Eu continuo a me considerar de esquerda, mas sei que a atual é passível de críticas pelo que cede às políticas neoliberais, mas ainda assim a considero a melhor força política em termos de ações para defesa dos trabalhadores do que a direita e extrema direita que chega ao poder. Não há um autor que polemize com a política mais que Baudrillard, que faz ensaios enigmáticos e inventa conceitos e análises de situações de forma paradoxal e isso também chamava minha atenção. Sua leitura era um teste para confirmar se você era realmente um pensador revolucionário de esquerda ou se tinha sido engolido pela máquina burocrática e ideológica do partido.
3. A nova desordem amorosa, de Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut (Brasiliense, 1981). Este livro provocou em mim o que O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, provocou em uma geração de mulheres. Ali, eu encontrei uma crítica feroz dos discursos da sexualidade e dos papéis sexuais masculinos em sua tendência padronizadora e totalitária. A obra tinha também uma notável crítica à sexologia e à defesa de todos os gozos possíveis, inclusive o sentimental. Mesmo que os autores fossem suspeitos para fazer a descrição do “gozo da mulher”, pois ainda é a visão de homens, ela tinha um profundo sentido e ressonância. Essa análise, eu descobri depois, ecoava na descrição do campo simbólico da sexualidade feita por Jean Baudrillard em A Sedução, outro livro que me impressionou. Eu completava o ciclo de minha própria desconstrução: do mundo, da política e da subjetividade, temas que me acompanharam ao longo de minha trajetória.
4. Cenários em ruínas, de Nelson Brissac Peixoto (Brasiliense, 1987). Nos anos 80, a emissora Manchete produziu uma série chamada América que originou um duplo livro de textos e depoimentos. Na minha visão, foi o batismo brasileiro do Pós-modernismo, corrente estético-literária que reunia em seu interior autores que eu então lia, como Paul Virilio e Jean Baudrillard. Sim, na universidade, fiquei dividido entre o marxismo e o pós-modernismo, coisas dos anos 80. Foi na série que descobri o filósofo Nelson Brissac Peixoto e fui atrás de suas obras. Para dizer um pouco, devo a ele a perspectiva que adotei em minha dissertação de mestrado. Foram fundamentais sua abordagem de temas como identidade, mídia e mitologia a partir das figuras das histórias que contou do cinema. É uma obra notável pela abordagem e proposta, talvez porque a ideia de exílio interno me fosse próxima, como filho único, pobre, criado apenas pela mãe e buscando sobreviver no mundo.
5. O Anti-Édipo – capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari (Assírio e Alvin, 1972). Este é outro dos meus livros mais riscados, descolados e com folhas soltas que tenho em minha biblioteca. É um tour de force de leitura, diriam os franceses. Você entende uma frase para logo vir a seguinte e você não entender nada. É a mais brilhante crítica do capital porque atinge o seu centro, o estabelecimento da relação entre capitalismo e esquizofrenia, o que para mim tem sentido, já que tive uma mãe e tia com a doença. A tese de que a culpa da loucura também é do sistema capitalista em que vivemos era uma resposta notável décadas antes de Vincent Gaulejac (falarei dele adiante) a enunciar. Ele descrevia a esquizofrenia presente no fluxo monetário e nas axiomáticas que o capital usa para legitimar-se como regime de sentido. Não há como ser anticapitalista sem passar pelo Anti-Édipo. Alerto que é uma travessia difícil, entretanto.
6. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa, de Michel Maffesoli (Forense Universitária, 1987). Foi Juremir Machado da Silva que me apresentou a obra de Maffesoli. Diferente da crítica de O Anti-Édipo, voltada para a dimensão macro da sociedade, a abordagem de Maffesoli voltava-se para o micro, para o cotidiano, para outras lógicas de identificação, numa palavra, sociabilidade. Onde Guattari via conflito, Maffesoli via encontro. Dessa forma, me pareciam autores que se complementavam numa análise social. A valorização da vida cotidiana, da religiosidade, do localismo, contrapunha à lógica contraditorial uma lógica orgânica, portanto, uma forma de abordagem chamada por Maffesoli de “compreensiva” dos fenômenos sociais.
Depois das primeiras leituras que lhe fazem impacto na universidade, a partir de um momento de sua formação, você começa a dedicar-se ao estudo de temas que considera fundamentais para sua análise do campo social. Você os agrega às aulas que ministra. Eles são oriundos de suas primeiras leituras, mas também originam seus primeiros escritos. Você passa a organizar sua biblioteca por grandes temas. Os meus são os seguintes:
Crítica do capitalismo
Não há como escrever ou ensinar sem assumir um lugar de combate à desigualdade provocada pelo capitalismo. O acesso à escola é parte das lutas sociais. Se somos professores, nosso compromisso é dividido entre o saber que ministramos e a denúncia de que o capital é o agente promotor de desigualdade. Fazemos isso para que nossos alunos possam se conscientizar da necessidade da educação para a mudança social, para a melhoria de suas condições de vida, o que não pode ser feito sem a consciência de seus direitos e deveres com relação aos outros. Meus livros de crítica do capitalismo são os seguintes:
7 – Com todo o vapor ao colapso, de Robert Kurz (Pazulin, 2004). Há inúmeros livros de introdução à obra de Marx ou seus intérpretes, como David Harvey. Ainda que tenha estudado a Crítica da Economia Política e também Ideologia Alemã de Marx na universidade, eu sempre indico para adentrar no campo do materialismo histórico e dialético autores contemporâneos ou bons intérpretes de Marx como David Harvey porque, além de fazerem uma ótima síntese, eles atualizam seu pensamento para os problemas contemporâneos. É assim com a obra de Kurz. Integrante da Revista Krisis, para mim ele foi um dos que melhor reconstrói a dinâmica do capital a partir da boa e velha crítica do fetiche da mercadoria, lugar que divide com o filósofo Anselm Jappe. A obra é uma crítica social radical sob a forma de ensaios que permitem perceber o modo como o marxismo colabora na análise do mundo contemporâneo.
8. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria, de Zygmunt Bauman (Zahar, 2008). Uma das obras do autor, conhecido por ser o fundador da noção de sociedade líquida, a crítica de Bauman ao capitalismo, é requintada. Aqui, o par Deleuze/Mafessoli é substituído por Kurz/Bauman em termos de perspectivas sobre o capital. Autor de leitura fácil e análises criativas, sua vasta obra inclui temas que vão da análise da precariedade da vida à crítica da tecnologia, mostrando como elas colaboram na transformação da sociedade de produtores em consumidores.
9. Gestão como doença social, de Vincent de Gaulejac (Ideias e Letras, 2007). Das ideologias capitalistas, a noção de gestão tornou-se a maior obsessão dos políticos neoliberais. Gaulejac faz a crítica do poder gerencialista, seu autoritarismo e os valores de mundo que adoecem as mentes dos trabalhadores tanto do serviço público como do privado. Sua análise faz, nos termos de Paul Virilio, a demonstração de como o capital produz a colonização da sociedade.
10. Capitalismo Paradoxante: um sistema adoecedor, de Vincent de Gaulejac (Hucitec, 2024). Este livro dá continuidade à tese do adoecimento produzido pelo capital, iniciada pelo autor na obra anterior. Aqui, a ideia é que o capitalismo impõe dilemas insolúveis ao indivíduo ao exigir objetivos incompatíveis entre si, como o de produzir cada vez mais com menos recursos, ter espírito de equipe em um sistema hipercompetitivo, mostra os efeitos conhecidos: estresse, burnout e depressão. É nesse sentido que continua a ideia de que o capital enlouquece presente na análise de O Anti-Édipo, de Deleuze & Guattari. Sua ideia é que se adaptar ao sistema não é solução, pois anestesia nossa resistência sem extinguir o sofrimento psíquico.
11. A parte maldita, de Georges Bataille (Imago, 1975). Escrito depois que Bataille tomou conhecimento da obra Ensaio sobre o dom, de Marcel Mauss, aqui o autor inverte a primazia da produção sobre o consumo, sustentando que o despender em vez do conservar, o destruir em vez de construir, o consumir em vez do produzir é que constituem a motivação da atividade humana. A obra faz parte de um projeto sobre a economia global do excesso – que depois inspirará Baudrillard – que o autor não conseguiu finalizar e que oferece notável contraponto a bases do materialismo histórico-dialético.
12. A cidade perversa: liberalismo e pornografia, de Dany-Robert Dufour (Civilização Brasileira, 2013). Aqui, o autor usa a noção batailleana de excesso para aproximar o capitalismo da pornografia e, com isto, mostrar que o liberalismo se tornou um regime de alienação pela exploração industrial da libido. Sua descrição de seus três componentes é notável: a paixão por ver e saber (paixão dos sentidos), a paixão da carne e a paixão por dominar sintetizam sua visão e inspiram também o filósofo esloveno Slavoj Zizek em sua máxima do universo do capital: goze! Um notável livro para insights sobre a dinâmica do bolsonarismo.
(continua na próxima semana)