No Egito, as bibliotecas eram chamadas ”Tesouro dos remédios da alma”.
De fato é nelas que se cura a ignorância, a mais perigosa das enfermidades
e a origem de todas as outras.
Jacques Bossuet
Aqui dou continuidade a meu texto A biblioteca do professor-ensaista (1) publicado em minha coluna de Sler da semana passada (23/09). Aqui destaco as obras sobre temas da vida cotidiana, cultura e arte, obras de referência e crítica à tecnologia que indico como temas que constituem para mim o segundo grupo que considero essenciais para escrever meus ensaios e que podem oferecer uma visão geral a professores em seus ensaios.
Estudos sobre a vida cotidiana
A leitura de Michel Maffesoli me apontou a importância da valorização da vida cotidiana em conteúdos de sala de aula e a de Agnes Heller me ajudou a definir suas estruturas para fins de ensino. De fato, não há como dissociar que, para professores escreverem um bom ensaio, é preciso viver cada dia por vez, observá-lo, perceber o que é importante nele para nós e para os alunos. Aqui, da valorização dos sentidos à felicidade, selecionei alguns dos livros que me permitiram fazer isso:
13.Walkscapes, o caminhar como prática estética (Gustavo Gili, 2013). Esta obra, como Caminhar e Parar (Gustavo Gili, 2017), ambas de Francesco Careri, descrevem como o caminhar pode ser um ato cognitivo e criativo para transformar o homem. Aqui caminhar é uma forma de arte: enquanto o primeiro livro narra a história da percepção da paisagem através do ato de caminhar, o segundo introduz a experiência da pausa das caminhadas, o parar político de que fala Virilio. Esta obra foi muito importante para o projeto de visitas orientadas que desenvolvi na Câmara Municipal, que incluíam passeios a pé pela cidade.
14.Uma história do silêncio: do renascimento aos nossos dias (Vozes, 2021), de Alain Corbin. Por alguma razão gosto de obras que apontem as características de nossos sentidos, pois acredito que a era digital os está destruindo. Este é um amplo painel de citações e referências culturais que permite ter uma visão de como foi expresso o silêncio ao longo do tempo. Numa época em que só ouvimos os sons do celular, escutar o silêncio, uma atitude valorizada pela cultura oriental, nos permite termos uma escuta intima interior, forma de reencontrar-se com o que o autor chama de “presença no ar” indispensável para o percurso espiritual, para o recolhimento.
15.A descoberta da sombra, de Roberto Casati (Cia das Letras, 2001). Na era dominada pela claridade das telas, um interessante livro que revela como a observação das sombras promoveu inúmeras descobertas científicas que vão das ciências à psicologia. Interessante obra para conhecer um método de trabalho com o inefável e o subjetivo.
16.O olho: uma história natural da visão, de Simon Ings (Laurosse, 2008). A visão é o principal instrumento de acesso ao conhecimento e fundamental no mundo das redes sociais. É, portanto, uma obra que colabora com sua compreensão, onde a autora sintetiza as contribuições de pesquisas científicas, filosofia, história e mitos para mostrar como e porque enxergamos “quem domina o que o olho vê tem poder”.
17.A filosofia radical, de Agnes Heller (Brasiliense, 1983). Esta obra, junto com Para mudar a vida: felicidade, liberdade e democracia (Brasiliense, 1982) da mesma autora, dedicam capítulos ao tema dos carecimentos e valores. Ao fundamentar o marxismo na dimensão do indivíduo, a autora retoma a defesa da luta pela qualidade de vida, os problemas da existência e a necessidade da felicidade. Sua novidade é a noção de carecimento radical como aquele que é capaz de transformar o mundo.
18.Happycracia: fabricando cidadãos felizes, de Edgar Cabanas e Eva Illouz (Ubu, 2022). Notável obra que mostra como a noção de felicidade foi transformada em mercadoria pela sociedade neoliberal. Os autores criticam o empreendedorismo de si mesmo, a maximização do bem-estar, a transformação do ideal de felicidade em algo pronto para o consumo que termina por produzir mais sofrimento e adoecimento. Um ataque a Psicologia Positiva onde os autores mostram como a busca da felicidade se tornou valor do capital e com ela, uma nova forma de tirania.
19.Sobre a arte de viver: lições para uma vida melhor, de Roman Krznaric (Zahar, 2013). Todo professor deve saber vincular e explorar com alguma profundidade temas de interesse geral com humanidades. Esta obra usa a história como ferramenta para falar do amor, família, empatia, trabalho, dinheiro, tempo, sentido, viagens, natureza, crença, criatividade e morte, alguns dos temas explorados em textos e ensaios e que são presentes na vida de nossos alunos e possibilitam uma base fundamental para ensaios de professores.
20.Por que repetimos os mesmos erros, de J.-D. Nasio (Zahar, 2014). Professores podem dar a mesma aula centenas de vezes. Esta é uma obra que fala das manifestações do inconsciente através da repetição “repetimos obsessivamente muitas vezes sem nos darmos conta tanto atitudes saudáveis como atitudes erradas”, diz o autor. A obra sugere que professores devem fazer, como o autor, seu esforço romper com a cadeia repetitiva do ensino como um sintoma.
21.A perversão comum, de Jean-Pierre Lebrun (Cia de Freud, 2008). A obra descreve os efeitos do capitalismo para a infância para retomar a previsão de Lacan que dizia que o futuro seria o da criança generalizada, de que seriamos todos normalizados como crianças. Não é assim que a propaganda nos trata? Uma interpretação de mundo que começa na crise de legitimidade dos pais na família frente aos filhos e vai a um universo onde o capital transforma os laços sociais e infantiliza os cidadãos.
Estudos sobre arte e cultura
Na minha formação em história, dei grande valor as disciplinas de história das artes cultura. Elas envolviam não apenas sua história, mas também tópicos de cultura brasileira e geral. Fui aluno de notáveis professores como Armindo Trevisan e Luís Roberto Lopes que me transmitiram a paixão pela cultura. Em sala de aula, essa fundamentação se revelou proveitosa para chamar a atenção dos alunos para os conteúdos de história que ministrava. Algumas obras são as seguintes:
22.O instante certo, de Dorrit Harazim (Companhia das Letras, 2016). Sempre gostei da fotografia para análise da história, algo valorizado ainda na era antes do celular (A/C). Como professor, aprendi que com uma fotografia em mãos temos o gancho para introduzir todo e qualquer tema. Daí que quando Harazim nos conta as histórias interligadas de imagens mundialmente conhecidas, é claro, ela fornece conteúdos enriquecedores não apenas para aulas, mas também para textos. Numa época em que é preferível perder um momento sublime para fazer centenas de selfies no presente, ela aprofunda o significado do olhar uma imagem fotográfica significativa do passado.
23.A magia do cinema, de Roger Ebert (Ediouro, 2004). Todo professor ensaista deveria conhecer um pouco de cinema. Comecei a gostar de cinema com Nelson Brissac Peixoto e aprendi que para escrever, cenas de filmes são importantes pois ficam na memória do público. A obra oferece para cada filme selecionado pelo autor um ensaio interpretativo. Analisando de filmes clássicos como Cidadão Kane, à modernos como Guerra nas Estrelas, é uma obra que contextualiza a proposta de Peixoto trazendo uma visão panorâmica útil para professores em situações de ensino.
24.Mainstream, a guerra global das mídias e das culturas, de Frédéric Martel (Civilização Brasileira, 2012). Este é um livro de geopolítica da cultura e das mídias que oferece uma visão global importante de seu objeto. Da indústria americana à Bollywood, pouca coisa escapa a explicação do autor na guerra mundial pelo conteúdo. Num mundo onde tudo se acelera com o streaming, ao mostrar como a indústria cultural encontra fórmulas para agradar a todos em qualquer lugar do mundo, a obra nos mostra a pasteurização do sentido que se produz em escala planetária.
25.Isso é arte? 150 anos de Arte Moderna do Impressionismo até hoje, de Will Gompertz (Zahar, 2013). Com estilo irreverente, um compêndio de história da arte moderna que narra o movimento, artistas e obras que ajudaram a definir o mundo contemporâneo. Segue o modelo ensaístico, sem notas de rodapé ou longa lista de fontes, mas é capaz de abordar os aspectos importantes de cada movimento. Acompanha um mapa resumo dos movimentos da arte moderna.
26.O que é um artista? De Sarah Thornton (Zahar, 2015). A obra reúne análises da autora da produção de 33 artistas contemporâneos, discute seu papel e mergulha nos bastidores de sua produção. Em linguagem irônica, autores como Jeff Koons, Ai Weiwei, Marina Abramovich, entre outros, tem seu processo de produção analisados pela autora em seus ateliês e à meia distância do mercado.
Obras de referência
Tanto para escrever ensaios como para dar aula, um professor precisa de obras de referência. Elas são compêndios amplos sobre temas de interesse geral que podem facilitar a fundamentação de uma aula ou escrita. Geralmente, tenho interesse em obras de cunho geral que me inspirem na escrita de ensaios ou sua fundamentação. São alguns deles:
27.Vocabulário de Aristóteles, de Pierre Pellegrin (Martins Fontes, 2010). Exemplar de uma coleção que inclui a base de definições e conceitos de outros pensadores de Platão à Merleau Ponty, é uma obra de referência básica para o ensaista que deseja fazer um texto consistente com uma abordagem refinada. Aprendi nas disciplinas de filosofia que cursei que o uso de definições filosóficas ao longo de nossos textos é um recurso essencial para produzir a sua profundidade. A referência ao sentido original das palavras, é um recursos que o sociólogo Michel Maffesoli utiliza muito em seus textos.
28.Ideogramas e a cultura chinesa, de Tai Hsuan-Na (É Realizações, 2017). Sempre achei fascinante combinar a definição de conceitos oferecidos pela tradição filosófica ocidental que aprendi na universidade com a oriental, sempre ausente em nossa formação. Esta é o tipo de obra de referência que permite insights que só obtemos quando descrevemos a realidade a partir dos conceitos que a escrita chinesa possibilita. Com uma caligrafia que é comparável a pintura, a obra oferece 538 ideogramas descritos em sua origem e significado, uma excelente ferramenta de abordar, de forma diferente, conceitos em ensaios.
29.Enciclopédia da Cultura Chinesa, de diversos autores (Contraponto, 2023). Na mesma linha, com quase 1.500 verbetes, trata-se do melhor compendio de cultura chinesa do Brasil. Aborda pensamentos, concepções, governança, literatura, história, arte, humanidades, geografia, artefatos, tecnologia com informações da história e da era contemporânea, um instrumento de comparação muito importante para o ensaista diversificar seu olhar. Acreito que minha valorização da cultura oriental venha da disciplina de História da Asia de meu curso de graduação.
30.Farmácia literária, de Ella Berthoud e Susan Elderkin (Verus, 2018). Uma compilação de mais de 400 obras e a sua relação com inspiração, sanidade e loucura do ser humano. Obra de referência, espécie de biblioterapia, ela indica uma obra de literatura para cada mal que aflige o homem em momentos de tédio ou crise. É, portanto, uma obra que revela o poder curativo da literatura na vida cotidiana.
31.1001 ideias que mudaram nossa forma de pensar, de Robert Arp (Sextante, 2014). Compêndio das mais importantes, curiosas, criativas e transformadoras ideias humanas, dos pensadores antigos aos atuais. Inclui teorias notáveis do pensamento de filósofos acompanhados de imagens, um guia de cultura geral e material para pesquisa e escrita.
32.Dicionário de Políticas Públicas, de Geraldo Di Giovanni e Marco Aurélio Nogueira (Unesp, 2015). Contém 197 verbetes que abrangem todos os conceitos do campo das políticas públicas essenciais para definir as formas de relacionamento do Estado com a Sociedade, tema de inúmeros ensaios em defesa do trabalho do professor e de outras categorias sociais. De ações afirmativas ao walfare state, os verbetes aprofundam a definição e o fundamento de cada prática de política pública.
33.Dicionário dos Antis: a cultura brasileira em negativo, coordenado por Carmela Grune e outros autores (Pontes, 2021). Reúne uma coletânea de temas de oposição, de negação e combate social engajado que compõe o chamado campo da cultura em negativo. De anti-aborto a anti-xenofobismo, são cerca de 120 conceitos repassados que permitem a construção de uma história das ideias ao avesso. Não existe ensaio nem prática profissional sem engajamento social. Colaboro com o verbete antibolsonarismo. Não poderia ser mais engajado.
34.Filosofia francesa: a influência de Foucault, Derrida, Deleuze e Cia, de Françoise Cusset (Artmed,2008). Já falei que a filosofia francesa foi importante em minha formação. Enquanto que nos anos 70 as obras da contracultura francesa e do pós-estruturalismo chegaram nos Estados Unidos, no Brasil ainda eram incipientes nos anos 80. E, exatamente por isso, eu ia atrás delas. Temas como desconstrução, biopoder, micropolítica, simulação, que fizeram eco nos EUA, só foram se mostrar essenciais para a esquerda para criticar, nos anos 2000, a emergência da nova direita.
35.Pluriverso: um dicionário do pós-desenvolvimento, de Alberto Acosta e outros (Elefante, 2021). A obra reúne uma centena de ensaios sobre conceitos de vida alternativos ao capitalismo a partir de experiências de vida de povos indígenas, camponeses e de pequenos grupos em todo o planeta, apontando caminhos promissores para a construção de mundos socialmente justos.
Crítica à tecnologia
Foi a leitura de Paul Virilio que moldou em mim uma visão crítica da tecnologia. Da forma como vejo, a revolução digital trouxe problemas que ainda não terminamos de analisar. Elemento essencial no modelo de desenvolvimento capitalista, a tecnologia também serve à dominação, a perda da individualidade e da capacidade de organização política. Daí as leituras indicadas abaixo:
36.Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, de Jaron Lanier (Intrínseca, 2018). Se o título pode parecer radical demais, ao menos faz você pensar sobre a importância que dá as redes sociais. O autor aponta os pontos negativos centrais: perda do livre-arbítrio, produção de insanidade, ampliação das fake-news, perda de sentido e de empatia, infelicidade e fonte de ódio estão entre outros argumentos do autor para mantermos distância das redes sociais.
37.A nova idade das trevas: a tecnologia e o fim do futuro, de James Bridle (Todavia, 2019). O autor critica a crença de que pela tecnologia e computação seria possível compreender nossa existência no mundo para construir um mundo melhor. Sua tese é que, ao contrário, o que ela faz é nos deixar perdidos em um mar de informação, estabelecer narrativas simplistas, promovendo a falta de compreensão das coisas na linha da obra anterior. A ideia é que quando perdemos a capacidade de pensar, perdemos a capacidade de reivindicar.
38.Infocracia: digitalização e crise da democracia, de Byung-Chul Han (Vozes, 2022). A obra descreve a substituição dos meios de produção pelos meios informação como decisiva para ganhos de poder, vigilância, controle e prognóstico de comportamentos psicopolíticos. Ela segue a linha de sua obra anterior, Não coisas, aprofundando as consequências da entrada na infosfera. Agora temos informação, mas não conhecimento, participamos de redes sociais, mas somos solitários, temos amigos, mas não nos encontramos.
39.A máquina do caos, de Max Fisher (Todavia, 2023). Análise da história e funcionamento das grandes empresas de tecnologia responsáveis pelas redes sociais e o impacto que fazem em nossas vidas, mostrando a exposição dos cidadãos a interesses e forças contrárias a seus interesses.
(continua na próxima semana…)
Foto da Capa: Ilustração da capa do livro "Uma história do silêncio: do renascimento aos nossos dias"
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