Estava eu em Santa Clara do Sul na semana passada. Fui convidado para ser o patrono da Feira do Livro da cidade. Minha participação era falar sobre meu trabalho como escritor e músico para os alunos do ensino médio e dos últimos anos do fundamental.
Depois da minha fala da tarde, o mestre de cerimônias conduziu um gincana literária com os estudantes. Uma das tarefas era trazerem ao palco um aluno que soubesse dizer um poema.
A primeira equipe trouxe um garoto que falou um texto de um autor de que não memorizei o nome. Era algo que o senso comum pensa ser um poema. Versos com um conteúdo meio edificante, beirando a autoajuda. Um texto longe do que de melhor se pode conhecer no universo da poesia.
Nada que me surpreendesse, pois a minha vida tem sido mostrar, para todos os níveis sociais e com diversas formações, de crianças a doutores, como descobrir outras perspectivas criativas no gênero poesia.
Veio então a segunda aluna. Ela falou simplesmente aquele que é pra mim o melhor poema da Cecília Meireles. E ela sabia todo de memória. Em seguida, o mestre de cerimônias fez uma votação com a plateia, estilo dos programas de auditório, pedindo aplausos para saber qual venceu. Para minha alegria, venceu a menina que disse o da Cecília.
A gincana terminou e fui atrás da garota. Ao alcançá-la, eu disse que aquele era o poema da Cecília Meireles de que eu mais gostava. Ela respondeu que também era o poema da Cecília preferido dela. Ou seja, além de conhecer o texto, conhecia a obra, pois tinha leitura do resto para ter uma posição a respeito. Fiquei duplamente feliz.
Esse episódio me deu um alento ante tanta barbaridade que se vem presenciando no Brasil com relação à cultura. Mostra que, felizmente, a sociedade é maior do que os desgovernos. Sempre tem gente legal fazendo coisas interessantes, como essa feira, por exemplo. E a boa poesia está aí pra ser descoberta. Inclusive pelo menino que leu o primeiro poema na gincana.
Coloco aqui o poemaço da Cecília Meireles. Repare na construção das imagens, no movimento cinematográfico do que vai se formando verso a verso diante dos nossos olhos:
CANÇÃO
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
Cecília Meireles (1901-1964), Viagem, Lisboa, 1939