Por falta do prego perdeu-se a ferradura
Por falta da ferradura perdeu-se o cavalo
Por falta do cavalo perdeu-se o cavaleiro
Por falta do cavaleiro perdeu-se a batalha
E assim perdeu-se o reino inteiro.
(Refrão popular)
Em algum tempo e lugar, contaram-me a história do homem salvo da morte ao perder por minutos um avião que se espatifou matando todos os passageiros. Há muitos relatos parecidos, mas a diferença é que nesse o sobrevivente resolveu investigar o motivo do atraso e, portanto, de não ter morrido. Relembrando as horas precedentes à partida do avião, deu-se conta de uma sequência de inusitados acontecimentos.
No elevador do edifício, entreverou-se com um vizinho aposentado e palrador. Ao passar pela portaria não conseguiu se desvencilhar das queixas do porteiro sobre seu baixo salário e as doenças da mulher. A seguir, não pôde fugir das mil desculpas do carteiro por lhe entregar uma carta atrasada vinda de um filho distante e, por fim, ao ir para o aeroporto, o taxista nervoso por ter brigado com a namorada naquela manhã, errou o caminho. E assim o sobrevivente do desastre aéreo se deu conta de que sua vida estava completamente enredada na de outras pessoas, algumas das quais nem conhecia.
Partindo dessa descoberta compreendeu que não há no mundo dois homens totalmente estranhos, apenas os laços que os ligam nem sempre são vislumbrados. Por causa dessa história lembrei-me de meu encontro com Margarete.
Há cerca de vinte anos, visitando a Universidade de Madison, no estado de Wisconsin (EUA), conheci um professor de agronomia que me contou ter vivido durante quatro anos no Rio Grande do Sul, na implantação da cultura da soja, uma decisão dos planejadores econômicos do governo, lá pelos anos cinquenta. Estes, por sua vez, foram influenciados pelos países ricos do hemisfério norte, diante da escassez de terras apropriadas para aquela leguminosa, fonte preciosa de proteínas vegetais de consumo crescente graças à “marquetizada” campanha contra os “horrores” do colesterol. Como a lavoura da soja necessita de grandes áreas para ser rentável, iniciou-se a desestruturação das pequenas e médias propriedades rurais, anteriormente produtoras de diversificadas culturas de subsistência familiar, as quais retinham o homem no campo.
Do referido fenômeno econômico surgiu uma série de novos fatos sociais que transformaram a vida de grandes segmentos da população gaúcha. O mais eloquente foi a concentração populacional urbana com a deterioração da qualidade de vida citadina. A elevada densidade demográfica entrelaçou-se com o surto da construção civil, com os supermercados, os shoppings e a miséria vileira. Esta, por sua vez, gerou a entrada no “mercado de trabalho” dos pivetes, das prostitutas, dos assaltantes e narcotraficantes, excedentes naturais da mão de obra da agricultura, da indústria, comércio e serviços em geral. Enfim, no jargão economês, a tão falada economia informal.
Semelhantemente aos acontecimentos que salvaram o homem do desastre aéreo, a atuação do agrônomo de Wisconsin na implantação da cultura da soja desencadeou um processo socioeconômico que, por sucessivas e entrelaçadas etapas, resultou no meu encontro com Margarete, que, como no samba de Assis Valente:
Poderia ser boneca de louça,
tão moça, mas não é,
hoje é boneca de pano,
gingando num cabaré.
É a ideia que me vem à lembrança enquanto preencho a ficha de Marga (seu nome de luta), natural de Santa Rosa, dezoito anos, quatro abortos provocados, agora grávida de seis meses e portadora de AIDS. Parece ter dez anos a mais, pois apresenta uma palidez causada pela anemia e desnutrição crônicas, dentes em mau estado, pele seca e enrugada pelo consumo diário de quarenta cigarros e várias cervejas.
Marga, apesar disso, mantém uns olhinhos azuis que encantaram o pivete Zé Luis, pai da criança. E é pela insistência dele em querer ter esse filho que ela está aqui hoje em minha frente fazendo sua primeira consulta pré-natal.
Pensando no filho, provavelmente aidético, que Marga vai parir e nas suas limitadas expectativas de vida, é que comecei a me lembrar da história do cavalo que perdeu a ferradura, do homem que perdeu o avião, do agrônomo de Wisconsin, do samba do Assis Valente. De como todos os destinos do mundo estão entrelaçados e dos imperceptíveis motivos que se encadearam a fim de colocar na minha agenda de hoje a Margarete, a boneca aidética e sua pobre sina, com as quais a partir de agora permanecerei eternamente comprometido.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA.
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