Antes do texto da semana, quero fazer um desabafo sobre mais um uso lamentável da palavra anão. Manifestei minha indignação no Facebook no dia de Corpus Christi. Os usos indevidos da palavra anão já respingaram muito e ainda respingam no cotidiano das pessoas com nanismo. E eis que me deparo com mais um. No jornal O Estado de São Paulo, o título da coluna de um cara que é pra lá de preconceituoso me deixou indignada: “Governo Lula é anão no Congresso e perdeu o contato com o Brasil que existe na vida real”. O tal colunista chama-se J.R. Guzzo e seus textos também são publicados na Zero Hora. Certamente, nada entende da vida como ela é. Dá vergonha! Para quem não sabe, a palavra anão é muito usada com o objetivo de debochar e desprestigiar pessoas, causas e atitudes. Tanto é que passamos a usar a expressão “pessoas com nanismo”. Obrigada Moisés Mendes pelo alerta. Mas vamos ao artigo!
Uma vida cotidiana digna só é possível quando há civilidade, que se traduz em respeito, acolhimento, pluralidade, inclusão.
Difícil lidar com tanto descaso, irresponsabilidade e ganância quando milhares de pessoas perdem tudo por conta das chuvas torrenciais que destruíram boa parte do Rio Grande do Sul. Nosso Porto, de sobrenome Alegre, está desfigurado. Há mais de um mês é só tristeza. A tragédia reverbera por todos os lados e reconstruir o que foi destruído demanda tempo. Mais uma vez me questiono sobre os meandros, as dobras, os caminhos e descaminhos que nos levaram para este tempo tão sombrio. Como chegamos nesta insanidade brutal, se as possibilidades de avanço das águas dos rios já haviam sido previstas e anunciadas? Não foi por falta de avisos, o que já está comprovado. E as feridas abertas são difíceis de curar. A solidariedade se faz presente sim, mas a opulência soberba e os abusos mostraram suas garras. Olho para os vazios e os acúmulos e me espanto com as generalizações e as promessas vãs. Desacomodo as certezas de algumas vozes e de discursos que carregam soluções como num passe de mágica. Nenhuma magia vai resolver. Só coragem para mudar, resiliência, trabalho, tempo.
Deixar a vida avançar como está é a catástrofe assumida. É a negação do que buscamos e fizemos – nossa luta, nossa esperança, nossa crença na possibilidade de um mundo justo. Nossa paz. Não podemos anestesiar os sonhos. É imprescindível abrir outros horizontes. Mas para isso é necessário descontinuar caminhos que já não servem. Dar adeus ao demasiado. Buscar o necessário. Sair do tempo-máquina, do tempo-automação e voltar ao tempo-humano. Criar novas utopias. Abrir buracos no cotidiano. Partir para a reinvenção.
A ciência e os estudos já feitos, e não considerados, colocaram em cena a possibilidade de uma geografia que não nos afogue novamente.
Para onde ir? Por quê? A utopia nos permite sonhar e fazer algo na contracorrente. Mas antes precisamos respirar com profundidade e tentar entender onde nos perdemos. O meio ambiente nunca esteve tão desregulado. Foram muitos os abusos contra a natureza. E eu me faço mais uma pergunta – Por que tanta destruição se no caminho há tanto para observar, aprender, ouvir? Tempo, tempo, tempo!
Diversidade, acolhimento, respeito pelo outro e PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE! Estes são os luxos do futuro. E sem estes luxos não teremos futuro! As chuvas que devastaram o Rio Grande do Sul, a seca que inquietou a Amazônia e tantos outros fenômenos climáticos já sinalizaram.
Minha esperança é que esses tempos exacerbados acendam outras luzes e cada um analise sua trajetória e seus feitos. Impossível não pensar nos políticos tão bem pagos e seus discursos oportunistas e descarados quando mergulhamos na miséria física, ambiental, moral, emocional e a pobreza extrema só aumenta. Recentemente mais uma votação reafirmou a libertinagem de quem ocupa o Congresso Nacional. Vou dar um exemplo compartilhando o que Eliara Santana escreveu no Facebook no dia 29 de maio: “Não é possível que a imprensa, diante do retrocesso das últimas votações do Congresso, siga o mantra ‘Em derrota para Lula’… NÃO É derrota pra Lula. Melhorem. Derrotado está o país, derrotada está a democracia quando a maioria dos deputados vota PELA LIBERAÇÃO sem punição das fake news eleitorais. EM ANO DE ELEIÇÃO. É o pior Congresso da história, que vota a favor de fake news e de arma. É disso que se trata.”
E é! O Centrão, cínico e oportunista como sempre, segue tirando proveito para os seus, no momento em que deveria estar buscando soluções viáveis para o drama vivido por milhares de pessoas.
Não sei se é um jeito de me consolar, mas lembrei de uma canção de José Miguel Wisnik, músico, compositor e ensaísta, professor de Literatura, mestre, doutor, um artista brasileiro que admiro muito, que diz: “Se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar”.
Há que se aprender a levantar e lutar com dignidade contra o que nos agride. Uma proposição artística pode nos fazer ver além do que a vida mostra. A arte resiste às formas instituídas, nos fortalece, esculpe outras dimensões, aponta outras paisagens. Por isso, a criatividade assusta. Reagir, sair da massificação e do pensamento único inquieta. Encontros múltiplos e de muitas vozes trazem desejo e coragem, essenciais para uma tomada de decisão democrática. A verdade é cheia de lacunas. A narrativa perfeita é uma mentira. Uma só opção não oferece escolha. Precisamos de encruzilhadas. A dúvida, a curiosidade, o questionamento são substanciais. Só uma mente arrogante sabe tudo. A condição humana é em essência imperfeita. A gente só é a partir do outro.
Somos o que podemos ser diante do imponderável. Mas desconhecer a nossa recente e lamentável história política (2019/2022) e compactuar com discursos oportunistas e falas descontextualizadas de comentaristas dos meios de comunicação, que ainda insistem em dizer que é “derrota de Lula” os votos pela liberação sem punição das fake news, é inaceitável. A derrota é da democracia brasileira. É de todos nós.
Quando ouvi pela primeira vez no rádio, em 1984, a música “Vai passar”, de Chico Buarque, a emoção foi grande. Era um prenúncio do fim da ditadura militar. Aquele samba-enredo, que se transformou em símbolo da Nova República, soava como um alento e se mantém atual nestes tempos difíceis que enfrentamos agora. Vai passar!
Foto da Capa: Freepik/Gerada por IA
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