Outro dia, enquanto me preparava para mais uma aula de Mediação de Leitura em uma sala de Educação Infantil na escola onde trabalho, meus olhos pousaram sobre um objeto em um canto da sala. Era uma caixa de madeira crua, lisa, de formato retangular, onde eram guardados brinquedos. De imediato, lembrei de uma caixa de madeira onde o meu pai guardava ferramentas e outros utensílios que serviam para algum conserto doméstico rápido. Se eu perguntar à minha mãe, talvez ela nem se lembre daquele estorvo que ocupava um canto entre a cozinha e o banheiro. E é possível que nem ele — se estivesse vivo — ainda recordasse daquela caixa que, aos meus olhos infantis, parecia imensa.
Pesada e proibida, aquela coisa estranha despertava em mim a mesma curiosidade que um baú de tesouros. Cada vez que meu pai mexia nela, eu ficava ao lado, atenta, tentando decifrar a utilidade de cada ferramenta que ele tirava lá de dentro. Havia chaves de fenda de diferentes tamanhos, um martelo com o cabo já desgastado pelo uso, alicates, pregos soltos que tilintavam quando ele os remexia. Eu observava tudo, fascinada, mas sabia que não devia tocar. “Isso não é brinquedo”, ele dizia, e eu me contentava em apenas olhar, absorvendo cada gesto, cada movimento cuidadoso das mãos dele.
Com o tempo, minha curiosidade se dissolveu na rotina. As ferramentas perderam seu encanto, e aquela caixa deixou de ser um mistério para se tornar apenas mais um objeto da casa. Já não esperava pelo momento em que meu pai a abriria, já não me sentava ao lado para assistir aos seus pequenos consertos. Outros interesses surgiram, outras distrações ocuparam minha mente.
Não sei ao certo quando aquela caixa desapareceu. Talvez tenha sido queimada na churrasqueira ou no fogão à lenha, por conta do grande número de cupins que carregava. Ou talvez tenha sido doada a alguém que ainda encontrasse alguma utilidade para ela. O que sei é que um dia ela já não estava mais ali. Assim como o meu pai, desapareceu do nosso campo de visão, tornando-se apenas uma lembrança.
A imagem daquela caixa na sala de aula me remeteu ao livro ‘Enquanto Deus não está olhando’, de Débora Ferraz, que li há alguns anos. O romance, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2014, conta a história de Érica, uma artista plástica que parte em busca do pai, desaparecido do hospital onde estava internado. No percurso, ela revisita lembranças da infância e da adolescência, tentando compreender a relação entre os dois. O enredo, não linear, transcorre como um fluxo de pensamento da personagem misturado com pequenas recordações e sonhos. Percorremos com Érica toda a perseguição até nos darmos conta de que ela nunca mais encontrará o que procura. O pai desapareceu para sempre, e ela precisará lidar com a perda e a insegurança ao mesmo tempo em que entra na fase adulta.
‘Enquanto Deus não está vendo’ é um livro sobre o luto e a dificuldade de lidar com as ausências da vida, mas também sobre a busca por pertencimento e significado diante da perda. A memória daquela caixa de ferramentas, evocada de maneira tão inesperada, me fez pensar em como certos objetos se tornam portais para o passado. Assim como a protagonista do romance de Débora Ferraz, percebi que também carrego minhas próprias buscas silenciosas, rastros de uma ausência que se infiltrou nos cantos da minha vida sem que eu percebesse.
Naquele dia, diante da caixa de brinquedos da sala de aula, senti uma espécie de vertigem. O tempo se dobrava sobre si mesmo, como se a menina que espiava a caixa de ferramentas do pai e a adulta que organizava os livros infantis fossem a mesma pessoa, coexistindo em um instante fugidio. Fiquei parada por um momento, olhando para aquele retângulo de madeira e pensando em como nos acostumamos a viver com lacunas.
Talvez seja isso que o luto nos ensine: aceitar que algumas presenças nunca voltam por inteiro. Elas ficam espalhadas pelo mundo em formas inesperadas — num livro, numa música, numa caixa esquecida num canto da sala. E, às vezes, encontramos nelas o suficiente para continuar.
Talvez, também, seja por isso que os livros sempre me atraíram tanto. Eles são, de certa forma, caixas cheias de histórias, de memórias e de vestígios do que fomos. E, ao abri-los, encontramos não apenas os personagens que os habitam, mas também pedaços de nós mesmos — como se cada página tivesse o poder de reacender lembranças adormecidas.
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Foto da Capa: Montagem sobre capa do livro 'Enquanto Deus não está olhando', de Débora Ferraz