A caixinha de som é chinesa. No Brasil, deixou de funcionar. De repente. Agora tem risco de vazar o som na sala de espera. Ou de ficar no silêncio absoluto, mais tarde, em alguma outra espera. Precisa ir à loja que vendeu. Para consertar ou comprar outra, pois são baratas. No caminho, a culpa de alimentar um comércio explorador, de cruzar por tantos moradores de rua sobre a calçada escaldante.
Se fosse inverno, seria pior? Se fosse na China? A loja fechou, mas o zelador da galeria abre os trabalhos acolhedores da manhã quente, comprida. Abriu uma outra loja – diz – logo adiante, e estão falando bem dela. Com razão – me digo -, pois lá a Ana chama o cliente de meu querido e abraça a causa da caixinha. Ela a examina, não sabe como resolver, mas sabe quem sabe e encaminha. Vai dar certo – garante -, e vai entrar em contato, no final da manhã. O som não vazará mais. O silêncio aterrador da espera ganhará companhia. Ana transmite confiança.
Na volta, a culpa está envelopada, pensante, sentindo. E logo pergunta, pois culpas são inquietas e não param. O que está ao alcance para um mundo melhor? O que não está, e convém não deixar fritando? Lembro-me de uma conversa real imaginária que tive com Octavio Paz, ensaísta e poeta mexicano. Ele me dizia que a poesia é a palavra que leva ao tempo primitivo, ao encantamento primordial. Não o verso, a métrica, sequer o ritmo, mas a maravilha da imagem que protege da gastura inevitável de uma prosa. Prosas gastam – dizia -, vidas gastam, precisam ser relançadas. Quem o faz é a poesia, essa que já havia nos lançado no começo. Nem precisa ser poema, mas o material que sai da natureza e vai à arte, deixando a humilhação da concretude do cimento para alcançar a transcendência do degrau.
Não é só a linguagem – prosseguia o poeta – que a poesia renova, mas a vida em si. Foi quando comentei com ele, em nossa conversa íntima e imaginária, que é o mesmo que fazem as mães. Oferecem uma interação poética que transcende a concretude dos cuidados objetivos e, maravilhando, de forma nova e única, abrem espaço para a subjetivação, ou seja, para ser. Para sermos. Um olhar fosco não o faria. Uma prosa sem melodia, tampouco. Ou um clichê. Precisa ser com a poesia.
Paz achou o argumento mais íntimo do que antropológico, mas acolheu. É o que mais tarde gente como a Ana faz e, sobretudo, refaz, oferecendo uma palavra com prosódia macia e imagem maravilhada renovando a confiança nesta vida. Por isso, a poesia é tão necessária. No começo e depois. Está no outro, estava na caixinha, está no livro. E, fora do livro que quase ninguém lê, ela nunca deixa de ser a protagonista do que todos nós estamos vivendo nas páginas das calçadas escaldantes, onde cada passo precisa da confiança de outro passo para deixar a concretude de sua caminhada. E voar.
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Foto da Capa: Freepik/Gerada por IA
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