“Não é mais possível pensarmos em uma política construída sem o afeto, contra o afeto, como em larga medida foi a da rule of law, do Estado de Direito. Ao ver o afeto como a via por onde entra o capricho, fica indicado que não se procurou democratizar o campo afetivo. O desafio de nossos tempos consiste em democratizar as paixões: a possibilidade de uma batalha pelo afeto”. Renato Janine Ribeiro, Muito Além do Espetáculo, p. 43.
Vi o show da Lady Gaga. Conheço poucas músicas dela, só alguns sucessos, então não era minha primeira opção de programa de aposentado para um sábado à noite. Simplesmente, ela não é da minha geração, que curtiu Sting no The Police. O que não sabia é que era de minha esposa. Por ideia dela, havíamos, há poucos dias, visto o show de Ney Matogrosso. Eu já escrevi aqui em Sler sobre shows na era do capitalismo artista. Sou aposentado, fazer o quê? Aproveitar a vida fazendo coisas que não fazia quando estava na ativa. Vou poupar o leitor daquela abordagem. Aqui, a minha abordagem é outra. Diferente do show do Roberto Carlos, que não se propõe a ter um viés político, tanto o de Ney Matogrosso como o de Lady Gaga sim. Não vou falar da morte de Nana Caymmi, que aconteceu na mesma semana, pois o debate sobre suas posições políticas frente à sua arte é uma questão que enrola a esquerda. É possível que excelentes artistas façam ótima música sendo de esquerda ou direita, ainda que considere que a maioria dos músicos de direita não faça, onde Caymmi é exceção.
Um show vale tanto quanto um ato político?
Lady Gaga e Ney Matogrosso têm um perfil político antissistema. O fato de que ambos tenham relações com o movimento LGBT+, seja diretamente ou não, deveria nos dizer algo dos tempos políticos que vivemos. Afinal, eles conseguem reunir em seus shows mais pessoas que qualquer ato ou movimento político. Em A sombra das maiorias silenciosas (Brasiliense, 1985), Jean Baudrillard reflete sobre o fato de que, nos anos 70, milhões de pessoas parecem se importar mais com um jogo de futebol do que com uma causa política. Eu olho o show de Lady Gaga e me impressiono com o fato de ele reunir mais de 2,5 milhões de pessoas na orla de Copacabana e penso: “Por que a política não faz o mesmo?”. O lugar onde se realizou o show ajuda: Copacabana é um lugar mítico para nós e para o mundo. A primeira vez que pisei lá, nos anos 80, como estudante (contarei isso noutra coluna futura), era como se saísse do real e entrasse num cenário de filme.
O show de Lady Gaga foi um evento de massas e tanto. Segundo estimativas, o último ato de massas político foi em São Paulo contra a anistia em 30 de março e teria reunido 6,5 mil pessoas. O jornalista Otavio Guedes, do G1, diz que juntas, as manifestações contra a anistia, da esquerda, e a favor, da direita, esta, inclusive em Copacabana, mesmo lugar do show de Lady Gaga, não reuniram mais do que 24 mil manifestantes, ou menos que a média de público do Flamengo e Corinthians, respectivamente 29 e 27 mil pessoas, só para voltarmos ao exemplo de Baudrillard.
Ney Matogrosso também não faz feio de público, ainda que não se compare ao de Lady Gaga. Um show de Ney Matogrosso, no Allianz Paz, reuniu 50 mil pessoas em 2024, e no Rock in Rio de 1985, chegou a 100 mil pessoas. É claro que as diferenças entre o público de Ney Matogrosso e Lady Gaga devem-se ao fato de um show ser gratuito e outro pago, mas mesmo um show de Ney Matogrosso dá um banho nas manifestações políticas. O show que vi, ainda que a lotação do auditório Araújo Viana seja de 3146 pessoas sentadas, subiu para um total de 4300 porque os organizadores vendem ingressos em pé. Eu sou um idoso: não posso me imaginar duas horas de pé, e não faço ideia de como os jovens fazem isso durante o show de Lady Gaga, onde, para as pessoas garantirem um lugar, chegavam com horas de antecedência. Leio no G1 que, a partir da meia-noite de sábado, as vias de acesso foram fechadas, com mobilização de servidores. É uma operação de guerra. Eu, como idoso, penso: “Como eles… vão ao banheiro?”
A presença política LGBT+
No show de Ney Matogrosso, em que estive, havia um amplo público que incluía o público LGBT+. Ele não é hegemônico no espetáculo, ao contrário do público de Lady Gaga, impressão que tive na transmissão. Um áudio preconceituoso registrou o horror da direita ao show de Lady Gaga. “Pode uma coisa dessas no século XXI, Arnaldo?”, penso. Ney Matogrosso já recebeu críticas do movimento LGBT+ por não assumir mais explicitamente a bandeira, ao que o artista respondeu: “a bandeira sou eu”. Uma postagem nas redes sociais resumiu para a esquerda a importância do show de Lady Gaga. Segundo a postagem, ele foi essa espécie de descarrego, como foi o show da Madonna, do espírito direitista que passou a impregnar as areias de Copacabana. Ainda que para mim isso seja simbolicamente exato, ainda existiria a pergunta: por que Lady Gaga significa tanto para o movimento LGBT+?
Faço a pergunta porque simpatizo com todo o movimento social que busca liberdade de ser e a felicidade. É o que faz o movimento LGBT+, que assumiu o protagonismo que no passado recente foi de outros movimentos, e a discussão sobre identitarismo na política está apenas começando e as faíscas estão por todo o lado. Eu penso que o movimento LGBT+ ensina à sociedade, a partir de suas lutas, um modo de ser e fazer política. Mas talvez esse seja um modo errado de ver a política do movimento. Em Vira-lata de raça (Tordesilhas, 2018), sua biografia, Ney Matogrosso diz que faz política em cima dos palcos: “Desde o início de minha vida artística, acredito que a política que provoca uma transformação hoje é a de dentro para fora, a transformação inversa é mera utopia. Não acredito na política partidária, e sim na micropolítica do dia a dia, dos costumes, que opera transformação no mundo através da liberdade (p. 173). Diferente de Lady Gaga, que assumiu claramente a agenda LGBT+, ele afirma que nunca realizou um trabalho artístico preocupado com a política: “sei que o que faço artisticamente tem um componente político, mas é uma força política humanitária”.
Para Ney Matogrosso, expressar-se com liberdade é o ato político essencial e a prática política é fora dela. Já Lady Gaga criou em 2012 a “Born This Way Foundation”, inspirada em seu álbum “Born This Way”. Ela recebe apoio da Universidade de Harvard e da Fundação MacArthur para colaborar com questões como saúde mental, bullying e preconceito, com o objetivo de apoiar jovens e criar um ambiente mais inclusivo e seguro. Ney Matogrosso se envolveu com o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), instituição criada em 1981 que luta pelo fim do preconceito contra a doença, onde é voluntário desde 2000. “Minha mãe criou uma menina que tinha sido retirada de um leprosário, separada de sua mãe biológica. Quando ela chegou lá em casa, eu soube como as pessoas com hanseníase eram tratadas. Crueldade é a palavra. Elas eram arrancadas da família, lançadas como cachorros para não ter contato com pessoas próximas. O que não podemos é deixar de ser quem somos, temos de nos manifestar sempre contra as injustiças” (p. 175).
A luta política de Lady Gaga
Como Ney Matogrosso, Lady Gaga também tem uma notável posição política. Reportagem do site Brasil de Fato de Nathália Fonseca (disponível aqui) assinala que, além da fundação, Lady Gaga, desde 2009, mantém a sua luta pelos direitos da causa LGBT+. Nesse ano, na Marcha Nacional pela Igualdade, em Washington, nos EUA, exigiu que os “direitos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e da comunidade queer em geral fossem protegidos em todos os estados dos EUA”. Fonseca lembra também a música lançada em 2015, ‘Til It Happens to You’, escrita para o documentário ‘The Hunting Ground’, que faz parte dessa trajetória quando relata casos de abuso sexual em universidades dos Estados Unidos e que serviu para também a cantora revelar que foi vítima de estupro aos 19 anos.
Fonseca cita também a fala política da artista de 2018 durante a premiação Women in Hollywood da revista ELLE, sobre a pressão enfrentada por mulheres na indústria do entretenimento. “Tentei vestido após vestido hoje, um espartilho apertado após outro, um salto após outro, um diamante, uma pena, milhares de tecidos bordados e as sedas mais lindas do mundo. Para ser honesta, senti náuseas. E me perguntei: o que realmente significa ser uma mulher em Hollywood? Não somos apenas objetos para entreter o mundo. Não somos apenas imagens para trazer sorrisos ou caretas aos rostos das pessoas. Não somos membros de um grande concurso de beleza para nos colocarem umas contra as outras para o prazer do público. Nós, mulheres em Hollywood, somos vozes.” Fonseca finaliza com a declaração de Lady Gaga no Grammy, quando dedicou a estatueta à comunidade trans: “Pessoas trans merecem amor. A comunidade queer merece ser elevada”, reação às medidas antitrans aprovadas por Donald Trump.
Se a política não passa mais pelos políticos, passa por onde? Pelas massas reunidas por esses megaespetáculos? Em parte, sim. A mensagem política de Lady Gaga e Ney Matogrosso é que agora shows são capazes de reunir a massa de que fala Jean Baudrillard e lhes passar uma mensagem. Tanto a multidão que se espreme para ver o show de pé nas laterais do Araújo Viana quanto o público nas areias de Copacabana é o mesmo desse amontoado social de que fala Baudrillard, atravessado por correntes e fluxos. “Tudo as atravessa, nelas se dilui sem deixar traços. E, na realidade, o apelo às massas sempre ficou sem resposta. Elas não irradiam, ao contrário, absorvem toda a irradiação das constelações periféricas do Estado, da História, da Cultura, do Sentido. Elas são a inércia, a força da inércia, a força do neutro” (Baudrillard, p. 9). Na visão de Baudrillard, a massa pode ser passiva, mas tem uma energia potencial que “amanhã [será] protagonista da história, quando elas tomarão a palavra e deixarão de ser a ‘maioria silenciosa’” (grifo meu, p. 10). Espero que esse dia tenha chegado.
As massas que a arte reúne
A obra de 1978 mostra um Baudrillard preocupado com o significado político das massas do passado que ele observava nos estádios de futebol. Ele não fala das massas de espetáculos musicais, propriamente, massas reunidas em nome da arte. Mas ele previu que a massa coloca em xeque os conceitos de classe social, relação social, de poder, de status. “Todos estes conceitos muito claros que fazem a glória das ciências legítimas, também nunca foram mais do que noções confusas, mas sobre as quais se conciliaram misteriosos objetivos, os de preservar um determinado código de análise” (p.11). A massa de Baudrillard dos estádios de futebol ainda era um lugar onde se procurava sentido onde não havia; as massas agora, dos shows musicais de massa, propriamente dito, afirmam, ao contrário, uma obrigação simbólica. A massa sem atribuição de Baudrillard é substituída pela massa com predicado de Lady Gaga e Ney Matogrosso: é uma massa LGBT+ ou de um devir LGBT+, o que significa uma mensagem de como fazer política. E a mensagem é esta: é preciso trazer a emoção para a política.
Diz Baudrillard que as massas conservam apenas a imagem de Deus, nunca a Ideia. “O que elas conservaram foi o fascínio dos mártires e dos santos, do juízo final, da dança dos mortos, foi o sortilégio, foi o espetáculo e o cerimonial da igreja, a imanência do ritual – contra a transcendência da ideia. Para as massas, o Reino de Deus sempre esteve sobre a terra, na imanência pagã dos ídolos, no espetáculo que a Igreja lhes oferecia” (p. 13). Vimos todos esses signos no show de Madonna e Lady Gaga em Copacabana, mas não vi no de Ney Matogrosso. Para Baudrillard, o que ainda é correto, é que as massas resistem ao imperativo da comunicação, a algo que querem que lhes dê sentido: elas querem o espetáculo. “O que se lhes dá são mensagens, elas querem apenas signos”, diz Baudrillard (p. 15).
Mas se as massas, para Baudrillard, tinham como contra estratégia expressa a absorção e o aniquilamento da cultura, do saber do poder e do social, entendo que hoje as massas estão em outro lugar, alimentando o sentido de novas lutas sociais na política. Como diz Ney Matogrosso, os artistas são a mensagem. As massas de Baudrillard não são boas condutoras de sentido: as massas de Lady Gaga e Ney Matogrosso são. Elas são diferentes das massas de que Baudrillard fala, que preferiam, na noite de extradição de Klaus Croissant, ver o jogo de futebol em que a França disputava sua classificação para a Copa do Mundo. Klaus Croissant (1931 – 2002), foi um ativista político e contra sua prisão se manifestaram Jean-Paul Sartre e Michel Foucault. O que chama a atenção de Baudrillard é o mesmo que nos chama a atenção nos shows de Lady Gaga e Ney Matogrosso: a [in]diferença como elemento significativo de mobilização popular: “[enquanto] algumas centenas de pessoas se manifestam, alguns advogados correm na noite, vinte milhões de pessoas passam sua noite diante da televisão. Quando a França ganhou, houve uma explosão de alegria popular. Horror e indignação dos espíritos esclarecidos diante dessa escandalosa diferença.”
Indiferença ou afirmação?
A indiferença no passado cede à afirmação das massas no presente? Entendo que sim. No passado, Baudrillard afirma que naquele momento a indiferença era explicada pela manipulação das massas pelo poder, mistificação pelo futebol, indiferença que nos diz que elas não têm nada a dizer da política. No presente, a maioria silenciosa sequer é silenciosa, ela grita, esperneia por Ney Matogrosso, por seus ídolos. No show dele, uma mulher corre em frente ao palco duas vezes, provavelmente sob o uso de psicotrópicos que o artista nunca negou fazer uso, e é perseguida pelos seguranças. É engraçado. Mas ela não é indiferente, ao contrário, ela é afirmação do diferente, do diverso, do que Lady Gaga chama de “monsters”.
Se no passado havia indiferença das massas, hoje elas afirmam a diferença. Quando lemos a biografia de Ney Matogrosso, vemos a luta pela afirmação de sua singularidade. O artista lutou contra tudo e contra todos para ser o que é, jamais cedeu de seu desejo em nome do conservadorismo de plantão. Lady Gaga também teve uma trajetória de luta para se expressar, com a sua recusa dos estereótipos de mulher que Hollywood a obrigava a ser. Em A expulsão do Outro (Relógio d’Água, 2018), Byung-Chul Han explica que a globalização exige a superação das diferenças entre as pessoas, “pois quanto mais estas forem idênticas, mais veloz é a circulação do capital, das mercadorias e da informação. A tendência é para que todos se tornem consumidores semelhantes. Os tempos em que existia o outro estão a passar. O outro como amigo, o outro como inferno, o outro como mistério, o outro como desejo estão a ser substituídos pelo igual. É a proliferação do igual, apresentada como crescimento, que faz com que o corpo social se torne patológico (Han, p. 9).
O corpo não é patológico, é ser. A massa popular que assiste ao show de Lady Gaga e Ney Matogrosso não é de dois milhões e meio de pessoas passivas, como dizia Baudrillard no passado. Elas não estão mais afirmando que preferem o jogo de futebol ao drama político: hoje elas transformam sua natureza em drama político, subvertendo a análise. Elas não são massas enganadas ou mistificadas, mas massas conscientes que estão apreciando um show musical como quem faz um protesto político. “Nós vamos invadir sua praia”, elas diriam aos bolsonaristas, como diz a canção do Ultraje Rigor de 1985. Os intelectuais que colocam a responsabilidade fácil de colocar no show a ilusão das massas não veem as atuais realizando-se nela como lugar da esperança de outro tipo de revolução. Não há aqui o resto de sentido de que Freud fala, segundo Baudrillard, na ordem psicológica. Não há repressão, há, ao contrário, nos termos de Foucault, de sua História da Sexualidade (Graal, 1985), exposição. Qual é a hipótese foucaultiana? Depois que a loucura foi transformada pela psiquiatria em doença mental; depois que a medicina se uniu com a anatomia patológica e deu origem à clínica; depois que as ciências humanas inventaram o homem; depois que fez a descoberta da história da prisão, temas de suas obras sucessivas, Foucault chegou na história da sexualidade com a hipótese inversa: a sexualidade não foi censurada ou reprimida, mas foi incitada a se expressar e se confessar na sociedade capitalista.
O desejo contra o capital
Esse público que lota shows musicais parece ser a síntese de todas essas ideias de Foucault: os grupos LGBT+ já foram chamados de loucos, excluídos por seus corpos tomados como anatomia patológica; foram descobertos pelas ciências humanas como identidades vigorosas e libertos como as pessoas a livre expressão da sua subjetividade, confessando sua sexualidade em público, se transformando na subversão cheia de sentido que enfrenta a opressão. Esse é o exemplo para todos: enfrentemos o capital a partir de nosso lugar no mundo. Fim da luta de classes e ascensão das identidades com sua mensagem? Não exatamente, entendo que é mais uma mensagem que se passa que diz que devemos focar nas formações do desejo no campo social.
O desejo capitalista assume uma única forma, ao contrário do desejo das massas, que assume várias. O desejo capitalista quer uniformizar para vender mais, o desejo das massas é plural e diverso como são as experiências eróticas e de identidade. Mas podemos realmente abandonar a luta de classes? Esse desejo que se quer revolucionário, a partir de seu próprio nome, significa o fim da luta política de classes? Acredito que não, que o que ele faz é mais política por outros meios, o que é diferente das massas de Baudrillard que repeliam e negavam a política. São dois milhões e meio de pessoas em um show de Lady Gaga, como quase cinco mil pessoas em um de Ney Matogrosso, em negação da opressão e que o fazem pela descoberta da força expressiva da exposição. “Olha como ele se mostra”, fala uma senhora que gentilmente cedeu seu lugar para minha esposa. É que eu, idoso, comprei errado, só poltronas pares. Ela, gentil, compreendeu. “Para ver o Ney Matogrosso, vim de São Leopoldo sozinha. Pode ficar no meu lugar.” Eu, ao lado dela, sentindo o êxtase de uma senhora que deveria ter a minha idade. Ney Matogrosso, em sua biografia, fala que explorou e assumiu sua sexualidade muito cedo. Lady Gaga fala de seus problemas psicológicos com a desenvoltura de quem superou seus próprios monstros. Ela inspira “little monsters”, seus fãs e também aqueles que se espelham em sua trajetória de superação, que são como os fãs de Ney Matogrosso que se espelham em sua trajetória de afirmação.
Mais em Ney Matogrosso, menos em Lady Gaga, mais em Madonna: em todos eles, como descreveu Foucault, o sexo tem um lugar central. O que não esperávamos é que chegasse a nós tão rápido a hipótese de Jamieson Webster em Sexo e desorganização (UBU, 2025). Segundo a autora, o sexo necessita da vida para criar formas que estejam à altura de sua natureza aquática e insaciável. Para ela, o que é revolucionário é que o “sexo resiste a qualquer tentativa de organizar seu excesso.” O sexo desorganiza. Para mim, essa hipótese tem consequências políticas. Webster quer fazer uma reflexão psicanalítica sobre sexo e sexualidade, sobre a psicanálise, e termina entregando uma ferramenta contra o capital.
No final, as massas têm fé em quê?
O campo do desejo é infinito, anárquico e recusa qualquer tentativa de delimitação. Entender expressões do desejo no campo social pode dar alternativas à luta política. É preciso dar um novo lugar à fantasia que engendra o outro, determinada hoje em sua forma pelo capitalismo – onde o marketing e o pornô são suas ferramentas. Vivemos uma sociedade neoliberal onde a liberdade é vista apenas como empreendedorismo, onde cada um é seu próprio empresário em busca de satisfação no trabalho. O corpo nunca é sexual, de afeto, é de trabalho, o que é produtor de depressão e cansaço, como diz Han. Ney Matogrosso e Lady Gaga desafiam a cada um a experimentar sua experiência erótica, afetiva e existencial para mudar o seu mundo. Quando a senhora ao meu lado no show de Ney Matogrosso diz que ele se expõe, essa exposição não é a da forma mercadoria, mas é da forma desejo. Ele dá forma ao desejo através do seu corpo, através do seu gesto. Esta expressão não é diferente de quando Lady Gaga para com sua equipe para admirar o espetáculo de seu público. Como Ney Matogrosso, ela ama o que faz, ainda que sob os holofotes e câmeras de gravação que nos mostram o sentimento no mesmo instante. Eu quero acreditar que é genuíno, ainda que se saiba que no show business tudo é controlado.
Escrevo este texto numa quinta-feira à tarde. No instante em que o finalizo, ouço o anúncio da eleição do novo Papa. Olho a tela da televisão, está tudo ali também: a massa na Praça de São Pedro, as imagens da multidão fiel e emocionada. Ouço o currículo de Leão XIV, e sua experiência latino-americana me agrada. Há uma mensagem oculta de uma vocação política, com a defesa dos mais pobres. Penso “O Vaticano elegeu um Lula”, quando falam da sua capacidade de diálogo com todas as correntes do clero, mas sei depois que ele tem um pensamento conservador no que se refere aos grupos LGBT+. Mas ele mesmo também está emocionado, admirando, como Lady Gaga, o público. Se Lady Gaga mexe com os corpos e desejos, Leão XIV mexe com a alma e a fé. A sombra de um drone está ali para mostrar que, mais uma vez e em ambos, tudo também é parte de uma indústria que produz imagens emocionantes.
Voltando à libertação política pelo desejo e não pela fé, para finalizar, Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, em A nova desordem amorosa (Brasiliense, 1981), mostram como o desejo é o lugar de luta contra as tendências totalizadoras e padronizadoras do mundo. Para eles, pelo sexo, podemos promover a transformação do mundo. “Mais do que perpetuar um pensamento pelas causas e agora dizer ‘É tudo culpa da sociedade’ (e a sociedade, é culpa de quem?), melhor seria ver como o surgimento das minorias sexuais (mulheres, pederastas, travestis, fetichistas – da borracha, do ferro, da porcelana – sadomasoquistas, chupadores de dedo, etc.) permite hoje conceber o desmoronamento do político como delegação e o desmoronamento da sexualidade reduzido ao sujo e ínfimo segredo genital. Pois é evidente que a revolução sexual existe tanto quanto a revolução política, ou colocando as coisas de outro modo, que a revolução sexual não tem fim, pois nunca haverá momento em que as boas intensidades seriam alcançadas de uma vez por todas, em que o ‘inimigo’ seria abatido definitivamente; e isto porque toda limitação engendra o desejo de sua desobediência, porque toda luta é apenas uma etapa, porque cada combate ganho multiplica as frentes de batalha e porque, nesse caso, trata-se menos de emancipação do que de exploração, de cultivo de mundos, trata-se de derivar na direção de espaços inéditos” (p. 42). Talvez neste ponto, tanto Ney Matogrosso como Lady Gaga, tenham algo a nos dizer.
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