“Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora por causa do samba
Madame diz o que samba tem pecado
Que o samba, coitado, devia acabar
Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de cor
Madame diz que o samba democrata
É música barata sem nenhum valor
…
Vamos acabar com o samba
Madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que samba é vexame
Prá que discutir com madame?
…
Prá que discutir com madame?”
…
Música de Janet de Almeida
Porto Alegre detesta o Carnaval. Porto Alegre persegue o Carnaval. Porto Alegre quer acabar com o Carnaval.
No último domingo, passei mais de uma hora dirigindo pelas Zonas Norte e Leste da capital dos gaúchos sem cruzar com um único súdito do Rei Momo. Sim, há blocos e escolas de samba que mantêm a tradição, mas esses estão mais para focos de resistência do que para uma expressão cultural apoiada pela sociedade e poder público. Ler sobre o Carnaval de Porto Alegre é ler sobre as dificuldades impostas pelos nossos governos aos que teimam em se alegrar nesses dias.
Não foi sempre assim. Da minha infância, lembro das noites assistindo o desfile na Perimetral, do Rei Momo Miudinho, das baterias ensurdecedoras das escolas, do vermelho e branco do Imperadores e de como o Estado Maior da Restinga levantava a torcida – Tinga, teu povo te ama!
Recordo das noites de espera nas arquibancadas do Carnaval da Santana, onde aguardávamos (sem muita esperança) a aparição de alguma escola, que nunca vinha. Apareciam as tribos carnavalescas, como os Comanches. Uma noite, para o verdadeiro delírio da multidão que esperava pacientemente a chegada das atrações, surgiu um pedaço da bateria Praiana. Foi o suficiente para que a rua fosse tomada pela folia.
As escolas de samba foram expulsas do Centro. O escritor José Falero, em seu “Mas em que mundo tu vive?”, lembra o seu último Carnaval no desfile na Avenida Loureiro da Silva: “Salvo engano, já no ano seguinte não haveria mais os desfiles das escolas de samba no Centro de Porto Alegre porque o racismo, e não outra coisa, os empurraria para as bordas da cidade, como já tinha sido feito no passado com a população negra da Ilhota” (p. 135).
Afinal, diz a madame, a raça não melhora por causa do samba.
Como declarou o doutor em História Comparada Gabriel Trigueiro no “Meio”, a chave para a demonização do Carnaval no Brasil é a raça. “Mesmo com a ascensão de supremacistas brancos no cenário político atual, ainda há um custo social grande em ser um racista aberto. Daí, bater no Carnaval é um dog whistle [no literal, um apito-de-cachorro; no figurado, uma mensagem de ódio cifrada] bem efetivo, pelo peso da contribuição e da ancestralidade africana em tudo que envolve a festa”, afirma Trigueiro.
O Carnaval sofre do racismo que faz com que as crianças da elite gaúcha saibam mais sobre a mitologia nórdica do que a africana, mesmo em uma cidade conhecida por seus muitos terreiros. É mais fácil falar de Thor e Odin do que Iemanjá. Assim como é mais aceita socialmente, atraindo mais patrocinadores e verbas públicas, uma visita ao Acampamento Farroupilha ou ao Carnaval Luz de Gramado do que o Carnaval – esse mesmo, que move multidões pelo Brasil afora. Claro que não estamos falando do Carnaval branco e sanitizado sem cachaça, mistura de raça ou mistura de cor.
Madame também diz que o samba tem pecado. Nas guerras culturais que são travadas pela extrema direita. O ex-presidente Bolsonaro relacionava a festa à pornografia, tendo compartilhado nas redes sociais uma cena de bloco de carnaval, em que um homem dança e em determinado momento se abaixa para outro urinar nele. O que é “golden shower?”, perguntou ele, fazendo as buscas sobre esse fetiche disparar na Internet.
Outro subproduto das guerras culturais é a associação entre aqueles que supostamente trabalham e aqueles que brincam no Carnaval, entre o “cidadão de bem” e os vagabundos devassos. Mesmo aqueles que costumam usar e abusar dos argumentos econômicos esquecem que o Carnaval gera riquezas e emprega milhares de pessoas.
O samba “Prá que discutir com madame?” é de autoria de Janet de Almeida. Foi gravado pela primeira vez em 1945 e imortalizado pela interpretação de João Gilberto. A música se tornou um clássico, sem perder sua atualidade.
Até porque, quase 80 anos depois, ainda tem gente que pensa como “a Madame”.