Acurando a qualidade do meu sistema cardiovascular, estava no exercício semanal da minha caminhada quando vimos a eminência de precipitações pluviométricas. Para o saudável hábito semanal (que a literatura médica clama que seja diário…), deparar-se com a aproximação de nuvens carregadas seria até desestimulante. Contudo, estávamos em Caicó, Sertão do Seridó Potiguar, onde o vislumbre de densas nebulosas dispara um sutil sorriso no rosto.
Em Recife, e acredito que na maioria de nossas capitais atlânticas, qualquer aproximação de pé-d’água entristece o céu: circulam alertas de perigo, os morros se angustiam.
No Sertão, não. “Está bonito para chover”: é o que se diz quando se olha a nuvada celeste em preparos de parir água.
Assim, continuamos na mesma trilha, sem receio de encontrá-la.
Seu cheiro a anuncia. No Seridó, chuva é odorante. Não é apenas como cheiro de terra molhada, é um cheiro diferente: cheira a terra e cheira o ar num fino lavanda amadeirado. É bem verdade que em Recife, e certamente noutras grandes cidades, a chuva tem seus odores, tem cheiro de tudo alagado e empossado: fedores.
Estando em Caicó, a chuva é de outro jeito. Recife, João Pessoa, Natal, Salvador, Rio, Aracaju chovem da mesma maneira: se abaixa e se escurece todo o firmamento num único roxo carregado.
No Seridó, não. Ela vem anunciada por nuvens de cores diversas: brancas, acinzentadas, azuis escuras, violetas. Todas em degradê: tem delas brancas da barriga, cinza e lilás do papo índigo. Ela não oculta a amplidão, chega distintamente: pluvioso céu iluminado. Dela, não foge o sol: aquece, ele; irriga, ela, que vem sob anilado véu de seda. Em Caicó, é tormenta e claridade; não é como em Iracema, Pipa, Cabedelo ou Tamandaré.
Quando é tempo dela, não precisamos cursar muito para encontrá-la, logo ela nos chega. E nos encontra quase que surpresos, duvidando, ainda, que ela não caia sobre nós. Mas, ela cai, nem que seja um pouquinho…
Nesta cidade de Sant’Ana, mesmo que caia pouco, pinga robusto: não como uma lágrima da Santa, mas como um cuspe de São Pedro.
Quando ela chega, há quem, inutilmente, tente se proteger, procurando abrigo abaixo do arvoredo. Porém, de Caatinga, esse é de copa magra, não impede que ela águe suas raízes secas e nem que ensope quem dela se esconde.
Em Caicó chove divergente, não chove na cidade toda: se vê um tufo de chuva aqui, outro ali, um lado da rua pode estar molhado e outro, seco. A água que caiu, praticamente, caiu apenas sobre mim. Havia um comerciante de oportunidades que vinha na direção contrária à minha, que não se molhou em nada.
O chão não ensopa como os solos de plantar cana: barro vermelho, massapê pegajoso que qualquer água amolece. A terra é de areia e pedra: é o chão duro do Sertão. A pancada d’água banha o piso de cacos, mas não o empapa. Contudo, nas zonas do litoral, o aguaceiro tudo enlameia, é base barrenta complacente. Em Caicó, o terreno é severo, é renitente para enlodar.
Aos cuidados do coração, seguimos a andada. No tempo dela, ela chega e molha sobre quem o vento lhe levou. Mas, ela passa, se continuarmos ou não na pisada. Mas, continuamos. Ela não emporcalhou nossa trilha e nem tomou o claro azul do céu para si. Pois, estando em Caicó, a chuva chove diferente.
Todos os textos de André Fersil estão AQUI.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube