As eleições municipais deste ano foram uma enorme decepção. Não que eu tivesse esperança, mas o que vi e ouvi foram candidatos a prefeito e vereador repetindo mais do mesmo, sem uma avaliação profunda do que estamos vivendo. Resultado: a abstenção saiu vitoriosa. Mais uma vez, movida pelo desejo de inclusão, respeito e acessibilidade, fiquei no vazio. Lembrei, então, de “O Mapa”, de Mario Quintana, o escritor das nossas ruas e esquinas esquisitas. Imediatamente busquei um texto inspirado neste poema que escrevi faz algum tempo, mas ainda ecoa.
Olhe o mapa da cidade como se examinasse a anatomia de um corpo. Do seu corpo. Dos corpos de milhares de indivíduos que cruzam as ruas cotidianamente. Homens. Mulheres. Jovens. Adolescentes. Crianças. Trabalhadores. Estudantes. Aposentados. Desempregados. Lindos, elegantes, saudáveis, alegres, confiantes. Curvados, dilacerados, abandonados, desesperados, desencantados, jogados nas ruas. De todos os tipos. De todas as idades. De todas as raças. De todas as cores. De todas as condições sociais. Anônimos? Não! Seres humanos.
Examine esse mapa com atenção e generosidade. Que anatomia é essa? Que tecido a envolve? Que sonhos, esperanças, pesadelos e doenças estão impregnados na pele desse corpo urbano, que pulsa incessante por uma vida digna? “Há tanta esquina esquisita”, diz o poeta. “Tanta nuança de paredes”. Tantas buscas, desejos, dores, sonhos, desistências. Há tanta miséria, violência, opulência, desigualdade, desperdício na cidade de muitos já cansados andares. Há beleza, justiça, bondade, vontade de acertar. Mas há ainda mais injustiça, precariedade, abuso de poder, descaso, preconceito, lixo. São muitas as vozes sufocadas na cidade onde construímos nossas vidas. E são vitais as questões nessa concretude urbana.
O corpo da nossa cidade precisa de quê? E os corpos que por ela andam? Quem se importa?
A qualidade de vida e o perfil das cidades hoje precisam de olhos atentos por conta da privatização e da desumanização que enfrentamos. Afinal, a quem pertence o espaço público? É possível humanizá-lo e transformá-lo em lugar de compartilhamento, colaboração, acolhimento, celebração da arte de bem viver? Vivemos em cidades cheias de conflitos criados por nós, pelo poder público e pelo poder econômico – do cidadão que joga lixo na rua, do empresário que constrói “mastodontes” por pura ganância, destruindo o entorno e a natureza, e de governos que só têm olhos para a privatização. É evidente que os espaços têm que ser valorizados a partir da ideia de que para viver na cidade não precisamos de “mastodontes de janelas pequenas”, grudados uns nos outros, que desrespeitam as regras mínimas do meio ambiente e da convivência saudável. É evidente que as cidades devem crescer sem destruir seu patrimônio, sem afogar seus centros históricos, sem abrir mão da inclusão, da brisa, da paisagem arborizada, das cores, da humanização. É evidente que precisamos de planejamento, uso honesto das verbas públicas, comprometimento das autoridades e do poder econômico com o bem estar da população. Mais criação e menos ambição.
Que projetos efetivos de revitalização, voltados para a acessibilidade, criação de ambientes acolhedores e livres de barreiras físicas, têm os governos? No discurso, muitos. Na prática, nada. O que nos sobra, então?
Muitos desafios e pouco interesse. Afinal, as eleições já passaram!
Por isso, insisto que, ao assumir o comando de uma cidade, todo gestor deveria ter por princípio cercar-se de profissionais que respeitam a vida urbana e a relação da cidade com os habitantes que por ela circulam. Suas ruas, calçadas e praças devem ser seguras, acessíveis, agradáveis e seus prédios harmonizar-se com a natureza, possibilitando a ampliação do olhar, para que o andar em direção ao trabalho, à escola, às compras, aos negócios e ao lazer seja leve, prazeroso. É bom ratificar que calçada não é estacionamento. Até porque muitas calçadas de Porto Alegre, pelo menos onde circulo, são ocupadas por carros, dificultando a passagem de mães com carrinho de bebês, pessoas mais velhas com dificuldade de andar, pessoas com muletas, em cadeira de rodas e por aí afora.
E as leis? E a fiscalização? E a ética?
O ponto de partida está em jogar no lixo a velha política do “toma lá, dá cá”, que facilita a corrupção. É necessário conhecer os pontos positivos e negativos da cidade, entender as demandas da população e planejar. É urgente mudar a relação com o poder econômico e deter a especulação abusiva, que derruba árvores impunemente e troca a saúde de uma população inteira pelo concreto. Inaugurar um novo jeito de ativar a economia, os negócios, o crescimento. O desafio passa, inevitavelmente, pelo respeito ao meio ambiente e pelo entendimento da diversidade humana, pela desburocratização dos serviços e pelo uso honesto do dinheiro público.
Discursos e promessas vazias não resolvem nada. Todos os sinais já foram dados!
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O que acende a esperança? A 70ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre ocupa a Praça da Alfândega e joga luzes através da cultura, do lazer, de encontros, debates e da arte da escrita.
Foto da Capa: Alex Rocha / PMPA
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