Cidades que admiramos, e gostamos de visitar, foram construídas ao longo dos séculos com os mesmos princípios urbanísticos. As edificações, além de construírem a si mesmas, construíam o espaço das ruas e praças. Esses espaços vazios ganhavam qualidade justamente pelo que os definia: as fachadas contínuas. A construção de uma cidade com qualidade estética é lenta, precisa do tempo como um de seus ingredientes principais.
No Brasil, fora as cidades coloniais preservadas por força de lei de órgãos como o IPHAN, as regras que regulam as construções mudam como os ventos. O resultado é visível: caos visual, ausência de princípios ordenadores constantes. Chegamos a uma situação que nem mais olhamos para o espaço público, concentramos o olhar em cada edifício isolado, elogiando, ou não, suas qualidades arquitetônicas. Mas, muitos de nós, conscientemente ou não, sentem um desconforto em relação ao conjunto urbano, à cidade. Há uma sensação de caos, de falta de harmonia, de desorganização visual.
Em outra coluna, falei da cidade brasileira como a cidade-arquipélago, agora gostaria de comentar sobre outra imagem que é predominante em nossas cidades: a cidade paliteiro. O momento é oportuno aqui, pois está em marcha a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre.
A cidade histórica tinha as fachadas das casas ou edifícios formando paredes contínuas que definiam o espaço aberto das ruas e praças. O chamado alinhamento predial (a expressão é significativa por si só) separava o lado de dentro do lado de fora das edificações. Pense nas zonas mais antigas de Porto Alegre para visualizar o que estou dizendo. Ou ainda nas de Ouro Preto, Copacabana ou no centro de Florianópolis. Exemplos não faltam.
Foi o Movimento Moderno da arquitetura, atendendo anseios do final do século XIX de salubridade, organização e eficiência das cidades, que propugnou pelos edifícios distanciados uns dos outros. Isso também tem a ver com questões filosóficas, da valorização da individualidade e da própria arte do século XX, mas esse não é o nosso assunto agora.
A proposta de individualidade dos edifícios não significava, entretanto, que eles se isolassem do convívio urbano. Pelo contrário, a ideia era de socialização do espaço coletivo, ampliando a rua-corredor em todas as direções, derrubando muros e cercas. A ideia de um grande parque público pontuado de edifícios de todos os tipos é a melhor imagem que se pode ter do que se queria realizar. Na prática, significava construir uma nova sobre a antiga. Só Brasília, por começar do zero, a realizou e, ironia do destino, passou a abrigar, logo após a sua inauguração, uma ditadura militar avessa a essa ideia de socialização do espaço público. Mas estava feita e o IPHAN a protegeu quando quiseram, por exemplo, transformar as superquadras em condomínios fechados.
Na cidade de sempre, sem coletivização do solo, nas suas ruas e avenidas existentes, novas casas ou edifícios passaram a ter quatro fachadas visíveis desde a rua, invertendo a relação de privacidade entre a via pública e os edifícios. O lado de dentro do lote urbano passa a ser visualmente acessível e os limites público/privado passam a ser mais fluidos.
As modificações foram drásticas. A visualidade da rua se modificou, ficou muito mais complexa. Edifícios de alturas variadas, isolados uns dos outros, misturaram-se a trechos do padrão antigo. Deixamos de andar por corredores para enxergar florestas de concreto que não podemos adentrar, pois a idealização de um térreo para todos não se concretizou. A não ser em Brasília onde temos essa liberdade de traçar nossos caminhos pelo meio das superquadras.
Edifícios mais antigos, que foram construídos aguardando o vizinho que lhe esconderia as fachadas internas terão eternamente suas entranhas à vista, mostrando empenas cegas ou fachadas descuidadas. Edifícios mais novos de diferentes alturas participam visualmente de ruas que não são as suas, atrapalhando a leitura de cada espaço urbano. O quadro é de caos, traz desorientação e desconforto sem a população se dar conta.
A legislação para construção das torres é muito rígida, exige um recuo padrão calculado matematicamente, isolando o edifício de seus vizinhos. Não há como estabelecer uma relação amigável entre os imóveis próximos. O recuo é obrigatório, de cima a baixo, em todas as direções. O edifício fica solto como um palito espetado e o conjunto deles vai formando um desagradável paliteiro. Quem já desceu no aeroporto de Congonhas olhando pela janela do avião pode fazer uma imagem do que estou falando. A prefeitura de São Paulo até oferece uma certa flexibilidade na definição dos recuos, a torre pode se deslocar para lá e para cá dentro do terreno. Em Porto Alegre, a rigidez é total.
Se o edifício isolado é um problema em si quando resultante de uma regra matemática, soma-se a ele a constante mudança de regras urbanísticas. A cada dez ou vinte anos, uma nova ideia de cidade nasce na cabeça dos planejadores como se houvesse um terreno vazio a ser construído. Não vejo como resolver isso sem criar uma regra flexível que permita, aos poucos, que os arquitetos se encarreguem de harmonizar os espaços urbanos resultantes dessa profusão de normas criadas ao longo da nossa história (que não é tão longa diga-se de passagem).
A rua ganha qualidade quando oferece uma leitura estética condizente. E seja qual for essa estética, ela começa por um princípio de unidade. Estou falando da inserção do edifício individual no conjunto da quadra. As fachadas de cada edifício pertencem tanto ao quarteirão quanto ao prédio individual.
Explico, então, minha proposta. Em vez da torre pré-figurada pelos recuos iguais, o arquiteto ganharia liberdade para adequar o projeto ao contexto já existente, desde que suas intenções se legitimassem a partir de justificativa e desenho apresentados ao órgão aprovador. Claro, para isso é preciso que o arquiteto volte a ter autoridade sobre o projeto do edifício. Hoje, é comum as construtoras fatiarem esse trabalho para guardarem para si uma autoria indevida.
A solução, no meu entender, para melhorar a qualidade visual e funcional da cidade é a flexibilização. Estudar cuidadosamente a melhor forma de implantar os edifícios no terreno, decidir onde aplicar os recuos obrigatórios a partir de certos princípios que preservem a privacidade dos vizinhos, eventualmente escalonar o prédio para que possa se adequar a altura do vizinho, planejar lojas na calçada sem obrigatoriamente entrar no horroroso sistema de base + torre – linguagem técnica que se refere aqueles primeiros pavimentos que ocupam quase todo o terreno com dois ou três pisos de estacionamento – são tarefas que os arquitetos estão aptos a fazê-las.
Foto da Capa: Acervo do Autor