O cotidiano da cidade sempre pulsou e pulsa ao meu redor. De abril de 2016 até agosto de 2020 escrevi várias vezes no blog Isso não é comum, que tive hospedado no Sul21, sobre a capital gaúcha. A inspiração vinha da pergunta do ator e diretor teatral Amir Haddad, do grupo Tá na Rua – “A cidade é para quem vive nela ou para quem vive dela?”. Foi assim que durante uma campanha eleitoral para prefeito e vereadores tentei, através da escrita, uma conversa com os candidatos sobre as condições e o futuro de Porto Alegre. Ingenuamente, alimentei a esperança de contribuir para que os eleitos, ao assumirem a administração do município, fizessem a diferença dando voz aos cidadãos. Essa romântica tentativa alimentava o desejo de promover uma troca permanente para melhorar o espaço urbano. Pensava em uma cidade inclusiva, acessível, segura, limpa, bonita, que respeitasse as diferenças e o meio ambiente. Ninguém me ouviu!
Hoje olho para Porto Alegre com tristeza diante do descaso e da falta de cuidado. E assim volto ao recado que enviei inspirada no poema “O Mapa” de Mario Quintana. Olhe o mapa da cidade como se examinasse a anatomia de um corpo. Do seu corpo. Dos corpos de milhares de indivíduos que cruzam as ruas cotidianamente. Trabalhadores. Estudantes. Aposentados. Desempregados. Jovens. Crianças. Loucos. Lindos, elegantes, saudáveis, alegres, confiantes. Curvados, dilacerados, abandonados, desesperados, desencantados. De todos os tipos. De todas as raças. De todas as cores. De todas as crenças. Anônimos? Não! Seres humanos.
Examine esse mapa com atenção e generosidade. Que anatomia é essa? Que sonhos, esperanças, pesadelos e doenças estão impregnados nesse corpo urbano, que pulsa incessante por vida digna? “Há tanta esquina esquisita”, diz o poeta. “Tanta nuança de paredes”. Tantas buscas, desejos, dores, alegrias, desistências, conquistas, fracassos. Há tanta miséria, violência, opulência, desperdício na cidade de muitos já cansados andares. Há beleza, justiça, bondade, vontade de acertar. Mas há injustiça, abuso de poder, abandono. São muitas as vozes sufocadas na cidade das nossas vidas. São muitas e vitais as questões dessa concretude urbana.
O corpo dessa cidade precisa de quê? E os corpos que por ela andam?
Ao repensar a cidade, sob o ponto de vista da segurança, da qualidade de vida, da limpeza, da beleza, da inclusão e da acessibilidade, entre tantos outros aspectos, me inquieta ainda a maneira como o espaço urbano é tratado. Nem sempre agimos em sintonia com nossas críticas e nossos desejos. É grande o descontrole e a desumanização, o que se soma ao evidente descaso dos governos.
Começo pelo lixo. As pessoas querem se ver livre do seu, como se não lhes pertencesse e pudesse, simplesmente, ser jogado de qualquer maneira. E não há informação objetiva, orientação e campanhas claras sobre descarte, cuidados, enfim. Sigo com a disputa dos motoristas por vagas para estacionar. A procura é insana e, se não encontram, estacionam nas calçadas, sem o mínimo respeito pelos pedestres – mães com filhos nos carrinhos, pessoas em cadeira de rodas, cegos, idosos com dificuldade de andar, pessoas de bengala ou muletas. Se não há vaga, a calçada serve. Afinal, não há fiscalização.
E o transporte público, hoje tão precário? E os parques, praças e ruas depois de uma festa popular? A sujeira que fica é chocante. Pouquíssimos entendem que os espaços são públicos e que também somos responsáveis por mantê-los limpos.
Mas vamos aos “mastodontes” construídos, revestidos de vidros espelhados, sem respeitar o entorno e a natureza, resultado de negócios entre empresários sagazes e governos que se vendem ao dinheiro fácil. As cidades são cheias de conflitos criados pelo poder público, pelo poder econômico, pela ganância humana. Conflitos relacionados ao tratamento dado aos lugares, muitas vezes arbitrário, desordenado, sem critério e sem respeito. Naturalmente, a exigência deveria partir dos governos, mas a maioria assume sem projetos. Ignoram o que é público, de olho na privatização. Muitos empresários, por sua vez, visam apenas o lucro. Acabam todos olhando para o próprio umbigo, exercendo o poder em benefício de poucos.
É evidente que os espaços precisam ser valorizados, requalificados e que é fundamental multiplicar essa discussão, difundindo a ideia de que para viver na cidade não precisamos de prédios enormes, grudados uns nos outros, que invadem o meio ambiente, desrespeitam as regras mínimas da natureza e da convivência saudável. É evidente que as cidades podem crescer sem destruir seus centros históricos e sua memória, sem se tornar impermeáveis, cinzas e insensíveis, sem abrir mão da inclusão, da brisa, da paisagem arborizada, dos horizontes amplos, da humanização.
É evidente que precisamos urgentemente de planejamento efetivo, uso honesto das verbas públicas, maior comprometimento das autoridades, mais agilidade e menos burocracia, mais criação e menos ambição. É evidente que a arte pode minimizar o impacto provocado pela dura paisagem concreta. Transformá-la em espaço criativo, de compartilhamento e celebração da arte de bem viver também é tarefa nossa.
Lembro o que ouvi de Vitor Mesquita, da Pubblicato Editora, idealizador do projeto URBE: “Cidade criativa é cidade compartilhada de dentro para fora. Fazer parte dessa transformação e experimentação é o que está no atual cotidiano das pessoas. A palavra é pertencimento e o verbo é compartilhar”. Lembro também do projeto Tristicidade – cartografias do abandono e da (in)visibilidade, do artista visual Leandro Selister. Um olhar agudo que escancarou o abandono e a miséria de um porto que esqueceu a alegria e largou sua gente ao deus-dará. O que fizemos? Como viver impunemente diante do desemprego, da fome, de pessoas que andam por aí e se alimentam do lixo e dormem nas calçadas, das ruas sujas e esburacadas, de uma cidade desamparada? Esses e outros questionamentos levaram Leandro a registrar em fotografia a realidade da nossa capital. Tristicidade foi uma denúncia, um alerta. O movimento tinha na sua essência o desejo de mostrar aos governantes que o mundo não é bem aquele que eles estão noticiando. E que não é esse o mundo que queremos!
Como desenhamos e construímos nossas cidades?
Sob o princípio do respeito ao meio ambiente e bem estar dos cidadãos ou apenas sob a lógica do mercado? A partir da natureza viva, que estimula os sentidos, a respiração e amplia o olhar ou a partir de grandes torres frias, de fachadas enormes e vazias, que não despertam nenhum sentimento?
Insisto que ao assumir o comando de uma cidade todo gestor deveria cercar-se de profissionais que valorizam a vida urbana e a relação da cidade com seus habitantes, homens, mulheres e crianças que por ela circulam. Suas ruas, calçadas e praças devem ser seguras, acessíveis e agradáveis e os prédios harmonizar-se com a natureza para que o andar em direção ao trabalho, à escola, às compras, aos negócios e ao lazer seja leve, prazeroso.
O desafio passa, inevitavelmente, pelo respeito ao meio ambiente e pela diversidade humana. O ponto de partida está em jogar no lixo a velha política do “toma lá, dá cá”, que facilita a corrupção. É necessário conhecer a cidade profundamente, seus pontos positivos e negativos, entender as demandas da população e planejar. Mudar a relação com o poder econômico, deter a especulação abusiva, que dita regras e troca uma população inteira pelo concreto e inaugurar um jeito diferente de ativar a economia, os negócios, o crescimento. Desburocratizar os serviços e fazer um bom uso do dinheiro público. O ano de 2024 provocou o caos com a explosão da natureza, que mostra sua exaustão diante de todos os abusos. Há um desleixo triste, quase total! E quando investem em obras para promover a acessibilidade não se dão ao trabalho de consultar técnicos no assunto e muito menos as pessoas com deficiência para fazer o que é mais adequado. A falta de empatia é assustadora. Preocupam-se só em mostrar o que fizeram. Verdades que não se sustentam, em uma cruel e cotidiana corrida de obstáculos.
Foto da Capa: Fernando Frazão/Agência Brasil
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