Minha formação universitária, na arquitetura da UFRGS nos anos 1970, foi feita com um viés modernista. A história era contada como uma confirmação de que chegamos aonde tínhamos que chegar. Como um destino a ser cumprido, inescapável. Era uma visão de mundo confortável, não tenho dúvida. Se houve lutas, disputas, e se ainda haveríamos de enfrentá-las, é porque sempre tinham os que queriam atrasar a marcha da história, mas a certeza da “vitória” do pensamento científico-tecnológico que gerava formas de viver em sociedade era garantida. A história tinha – e ainda tem para muitos – o lado certo.
Dentro dessa visão evolucionista, as cidades teriam se formado e crescido à medida que foram sendo encontradas soluções técnicas e funcionais à necessidade do ser humano de viver em sociedade. É bonito pensar assim. Como se tudo fosse natural. O lado ruim é que a gente sem querer acha que as cidades só poderiam resultar no que são, que não poderiam ser diferentes. E é aí que o pensamento passa a ser ideológico! Não nos questionamos, não perguntamos por que assim e não assado. Aceitamos como inevitável viver do jeito que vivemos, desdenhamos das alternativas que as vezes aparecem, chamando-as de utópicas e vendo nessa palavra um palavrão.
A cidade é construída a partir de valores, de maneiras de viver e de se relacionar com os outros e com o mundo natural e material. Há expectativas simbólicas e espirituais por trás da construção da cidade. A maneira de ser do indivíduo na sociedade, seus valores, afetos medos e preconceitos se materializam na sua maneira de morar. Não é racista? Ok, mas você já parou para se perguntar por que o vidro da sua cozinha é martelado? Cozinha era lugar dos escravizados trabalharem, lugar para não ser visto. E tem outra ideologia que anda solta por aí: trabalhar é para pobre. A elite da sociedade brasileira colonial não tinha isso por hábito ou valor. E muitos seguem assim ainda hoje e chegam a subir alto na hierarquia social e política…
E quais são nossos valores? Uma boa maneira de percebê-los é olhar para outra tábua de valores. Por exemplo, você poderia imaginar uma comunidade indígena do amazonas demarcando terras, levantando cercas e propriedades, registrando-as em livros, criando um universo em torno de segurança patrimonial? Ah, mas nós somos sofisticados, o topo da cadeia evolutiva. Somos? Vivemos bem? Ou criamos uma ideologia estapafúrdia, a do individualismo, que nos aprisionou no pior dos mundos? Falo da insegurança, medo, fome, epidemias, poluição… deixo para o leitor completar a lista.
Se ainda não ficou claro, o poder ideológico de uma civilização que domina o planeta, vamos pensar: não é curioso que ocidente ou oriente, capitalismo ou comunismo, chegaram ao mesmo resultado em suas cidades infestadas de carros, poluídas, cheias de trabalhadores alienados e outras características que não nos deixam perceber grandes diferenças entre estes mundos a não ser as formas de controle social, mais ou menos explicitas em cada país? Vivemos sob o império da ideologia da produção e do consumo, desencadeada pela Revolução Industrial.
Só que o desenvolvimento urbano das cidades tem a característica de uma forte inércia. Elas são feitas de pedra, aço e concreto. Precisam de muito tempo para mudarem de rumo. São como um grande navio no mar, não mudam o rumo com facilidade. Para atracar ou partir, precisam de rebocadores. Quer dizer, necessitam de cuidados especiais nestas ocasiões. Mudanças ideológicas são lentas, mas menos lentas quando comparadas com a história das cidades. Existem cidades no mundo que são anteriores à Revolução Industrial e guardam muito das características antigas.
A mudança ideológica também tem sua inércia. Até o fim do século XIX ainda eram hegemônicas ideias de urbanistas como Camillo Sitte, que escreveu A Construção das Cidades Segundo Seus Princípios Artísticos. Só o título de seu livro mais famoso já diz tudo. A preocupação era formal, versava sobre largura das ruas, dimensões das praças, harmonia entre altura das fachadas e a largura da rua e muitas outras questões estéticas. Foi só no século XX que a sistematização do modo de produção fordista foi aplicada ao urbanismo e as cidades passaram a ser pensadas como uma operação fabril. O espírito analítico gestado fortemente no século XIX finalmente dissecou as “funções” do cidadão na cidade: morar, trabalhar, entreter-se, ir às compras e locomover-se entre esse zoneamento que a cidade deveria comportar. Cada coisa em seu lugar em nome da eficiência econômica.
Os efeitos dessa nova visão foram sobrepostos à cidade existente. Hoje, no Brasil principalmente, vivemos em cidades mais desconstruídas do que construídas. Não há um princípio ordenador único, fruto de um saber do “bem viver”. Estamos desorientados e nessa desorientação nós ficamos na objetividade de uma cidade não para as pessoas, mas para os automóveis, para a economia, para o lucro imobiliário. A cidade como uma indústria. Aos cidadãos o cansaço de uma labuta sem fim, compensada pelo acúmulo de mercadorias que exigem produção num círculo vicioso e entediante.