“Seu negrume não surgiu no deserto de Gobi ou na floresta tropical da Amazônia. Originou-se no interior e no cerne da civilização europeia. Os gritos dos assassinados ecoaram a pouca distância das universidades; o sadismo aconteceu a uma quadra dos teatros e dos museus… as altas esferas da instrução, da filosofia e da expressão artística converteram-se no cenário para Auschwitz”.
George Steiner – Linguagem e Silêncio, 1958
O Dr. Eduard Wirths viveu direta e intensamente o conflito paradoxal de cura e morte dos campos de concentração nazistas. Médico competente e dedicado, na opinião dos próprios prisioneiros, ele também foi o responsável pela criação e funcionamento da seleção e mortes de prisioneiros incapazes para o trabalho, além de supervisor de todo o processo de assassinatos em massa de Auschwitz.
Por causa dessa dicotomia, alguns sobreviventes das câmaras de gás referem-se a ele não apenas como um criminoso, mas também como uma trágica figura. Quando se entregou às autoridades britânicas no fim da guerra, o oficial que o recebeu disse: “Acabo de apertar a mão do homem responsável pela morte de quatro milhões de seres humanos”.
Wirths era ginecologista; a pesquisa a que mais se dedicou foi a relacionada às lesões pré-cancerosas do colo uterino e o novo instrumento usado por ele foi o colposcópio, produzido pela associação da excelente indústria ótica germânica com a ginecologia oncótica. Com este aparelho – na realidade um sistema de lentes adaptadas a um tubo metálico – era possível observar pequenas lesões pré-cancerosas invisíveis a olho nu.
Quando isto acontecia, o colo uterino era removido cirurgicamente e enviado para um laboratório de Hamburgo, pertencente a um irmão de Wirths e supervisionado pelo Dr. Hans Hinselmann, antigo professor de Wirths. O exame colposcópico, feito em grande número de prisioneiras, possibilitou os estudos pioneiros da escola ginecológica alemã e deu fama e prestígio ao Prof. Hinselmann, pois a colposcopia revelou-se um excelente método diagnóstico em ginecologia oncótica.
A Dra. Marie L., médica e prisioneira do campo, terminada a guerra, fez o seguinte relato: “À primeira vista, estes experimentos eram relativamente inócuos, mas como os ginecologistas queriam estudar a evolução do câncer, em vez de fazer uma simples biópsia, eles amputavam todo o colo do útero. Acontece que as péssimas condições das prisioneiras de Auschwitz ensejavam o aparecimento de complicações como hemorragias, infecções e mesmo a morte. Às que não morriam após a cirurgia, ficavam muito debilitadas e, portanto, inúteis para o trabalho, só lhes restando um destino: as câmaras de gás”.
Um outro médico-prisioneiro, Dr. Jan W., ao depor no tribunal dos crimes de guerra, disse: “Sob o ponto de vista formal, Wirths foi responsável por tudo o que aconteceu nas secções médicas do campo, pois ele aceitou ideológica e profissionalmente tudo o que foi lá realizado. Milhões foram mortos”.
Em Eugenia: a Política de Morte do Nazismo, o historiador Voltaire Schilling afirma:
“… A política de extermínio não foi um gesto tresloucado e impensado. A maioria dos seus agentes estava firmemente convencida do seu rigor científico e da sua certeza benéfica para a humanidade. Levaram à prática aquilo que fazia anos era defendido por pensadores de renome, por revistas científicas e por médicos ilustres. Hitler implementou aquilo que amplos setores científicos acreditavam ser verdadeiro. Foi o primeiro pacto moderno entre a ciência e a barbárie”.
O final desta trágica história foi contado por Robert Jay Lifton, historiador americano que, entre inúmeros livros sobre temas de guerra, escreveu The Nazi Doctors. Wirths se enforcou na mesma noite em que se entregou às tropas soviéticas e no mesmo campo de concentração onde fazia suas “experiências científicas”. Hinselmann foi julgado em Nuremberg e condenado a três anos de prisão.
Ambos eram excelentes médicos, competentes ginecologistas que muito contribuíram para a detecção precoce e cura do carcinoma de colo uterino. Provavelmente ouviam Wagner, Bach, Beethoven e cantavam emocionados Die Schöne Müllerin e outros lieder de Schuman, assim como deviam ler, embevecidos, Heine, Schiller, Goethe e Thomas Mann.
E, segundo consta, eram perfeitos pais de família e frequentavam regularmente os cultos religiosos dominicais.
Enfim, pertenciam ao cerne da cultura europeia, como disse Steiner, mas em nome dela e da ciência médica, praticaram crimes que jamais deverão ser esquecidos. Mesmo quando de sua ciência só restará o olvido.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras
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Foto da Capa: Eduard Wirths ao centro / Memorial do Holocausto-EUA