Nunca fui uma pessoa obstinadamente curiosa. Contudo, confesso que não gosto de ter um mistério por perto. Talvez por isso – suponho que não só – me tornei uma psicanalista lacaniana. A irritação de não entender o que o entorno psicanalítico produzia – a conversa dos iniciados – me moveu a comer alguns livros. Somente depois, com uma práxis, quer dizer, com paciência e pacientes, esses saberes foram se tornando mais amigáveis.
Deve ter relação com um passado adolescente ávido por ciências ocultas, Umbanda, Wicca e Cabala. A esse respeito, em um passeio por Benjamin e Kafka, Agamben fala sobre magia e felicidade. Citando o autor de O Processo, aponta uma das concepções da magia cuja essência, longe de criar, estaria mais em chamar. Diz, então, Agamben, meu convidado do texto:
Tal definição está de acordo com a antiga tradição que cabalistas e necromantes seguiram escrupulosamente em todos os tempos, segundo a qual a magia é, essencialmente, uma ciência dos nomes secretos. Cada coisa, cada ser, tem, além de seu nome manifesto, um nome escondido, ao qual não pode deixar de responder. Ser mago significa conhecer e evocar esse arquinome. Disso nascem as intermináveis listas de nomes – diabólicos ou angélicos – com as quais o necromante garante para si o domínio sobre potências espirituais. O nome secreto é para ele apenas a sigla de seu poder de vida e de morte sobre a criatura que o traz[1].
Me detive nesta passagem porque ela me pareceu extremamente acorde às mistificações de nosso tempo e seus enlaces com a necropolítica[2], aquele conceito desenvolvido pelo pulsante pensador camaronês Achille Mbembe. Há decisão e projeto nas mãos dos poderosos que administram a vida e a morte. Os mesmos burocratas que entopem as massas de tecnicismos anglicistas. Os mesmos que nos fazem crer que política é uma coisa “lá longe”, em Brasília, coisa de engravatados, de colarinhos brancos, os tais iniciados. Os mesmos que deixam as suas palavras secretas e codificadas para que pensemos que elas não têm nada a ver com a nossa vida. Os mesmos que fazem com que pensemos que não temos o direito de saber o que são commodities, por exemplo. E assim nos fazem nunca ligar os pontos: a exacerbação e consumo desenfreado de certas commodities com desastres ambientais, como o do último maio no Rio Grande do Sul.
Ainda a propósito de palavras, a drag queen Rita Von Hunt há alguns dias desmistificou em vídeo a palavra tragédia ao comentar sobre o evento climático extremo vivido no Sul do país. Entre tantos pontos que levanta, em uma leitura articulada e dinâmica do Estado brasileiro, Rita mostra como “o fim do mundo pode ser um ótimo momento para fazer negócios”.
A partir daí podemos entender que há uma gestão do desastre em curso. Os governos neoliberais do estado do Rio Grande do Sul e da Prefeitura de Porto Alegre, apesar de eleitos, não representam o anseio de bem-estar do povo. Representam, sim, interesses daqueles que podem lucrar política e/ou economicamente. Deixando as Universidades de fora, o prefeito Sebastião Melo inclui uma consultoria – travestida de benesse – com a Alvarez e Marsal. A empresa teve uma atuação controversa no desastre do furacão Katrina, em Nova Orleans, movida a privatizações, gentrificação de populações já vulneráveis e demissões em massa.
É o abracadabra macabro de um neoliberalismo que desvela a palavra fascista em suas ações, que não hesita em limpar a própria barra, fazendo do desastre um mercado emergente. Em palavras mais simples, sem voltas e segredos, é ganância acima de tudo.
[1] Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
[2] Mbembe, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
Foto da Capa: Freepick/Gerada por IA
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