Antigamente, na época da colonização da África, os antropólogos eram os que estavam aptos a estudar as culturas classificadas como “primitivas”. Para muitos intelectuais europeus da época, as culturas africanas pareciam muito com as culturas europeias de tempos muito antigos, tempos anteriores ao desenvolvimento da filosofia e das ciências.
No entanto, ao se aprofundarem mais, esses antropólogos tiveram uma grande surpresa quando viram, nas culturas africanas que pesquisavam, ideias tão complexas e sofisticadas quanto às dos filósofos mais venerados na Europa, esculturas tão refinadas quanto o melhor que a Grécia produziu, textos orais tão perfeitos quanto os dos melhores poetas europeus. Mas os africanos não eram primitivos? Como tinham feito coisas tão elevadas?
A resposta? Não, os africanos não eram primitivos. Nunca foram. Isso ficou ainda mais evidente quando intelectuais africanos passaram a estudar sua cultura, não mais como algo “primitivo”, mas como verdadeiros tesouros de conhecimento, sabedoria, beleza e ética que muito têm a ensinar a todos os povos do mundo. Todos. Sem exceção.
Atenta ao que outros campos do saber encontravam na África e no Brasil africano, a antropologia soube se reinventar e participar desse movimento importantíssimo. Uma grande contribuição a essa conquista ocorreu aqui no Brasil, pelo trabalho de uma antropóloga argentina que se iniciou no candomblé baiano e, pesquisando os rituais fúnebres que ocorriam em seu terreiro, discutiu as ideias de morte e vida, mundo espiritual e mundo material, que animam a prática religiosa de tantos seguidores das religiões de matriz africana. Seu nome? Juana Elbein dos Santos. E sua obra? Os Nagô e a morte.
Juana conhecia bem o que escreveram, antes dela, os antropólogos primitivistas do século XIX, mas foi além. Praticante da espiritualidade africana, seu olhar vinha tanto de dentro, como iniciada, quanto de fora, cientista que era. E o que ela descobre é uma verdadeira ciência africana, uma filosofia profunda, racional e detalhada. E é isso que descobrem, também, todos os leitores de sua obra. Antes de virar livro, o texto foi apresentado na França como tese de doutorado. Depois, se tornou uma das obras mais lidas sobre religiosidade africana no Brasil, com diversas edições e frequentemente citada mesmo por autores africanos em suas pesquisas.
Depois do sucesso dessa obra, Juana não sossegou. Com seu marido, o sacerdote, artista visual e escritor Deoscóredes Maximiliano dos Santos, mais conhecido como Mestre Didi, pesquisou e traduziu textos sagrados de grande importância e lançou obras que discutem detalhadamente ideias e mitos das tradições africanas e afro-brasileiras. A obra de Juana Elbein dos Santos segue sendo referência inescapável para o entendimento dessa que é uma das tradições espirituais mais ricas e profundas existentes no mundo.
Ao tocar o pé na encruzilhada entre ciência e conhecimento iniciático, a obra de Elbein dos Santos passou a fazer parte da mesma encruzilhada e, mais, tornou-se marco fundamental para quem busca fazer essa jornada. E é a partir de sua leitura que começamos nossa jornada iniciática. Abrem-se caminhos para outras tantas estradas e encruzilhadas, se abrem ao devir e ao que já foi, aos vivos, aos mortos e aos não-nascidos. Frequentá-la? Sempre.
* Este texto é criação coletiva da mestra Mãe Bete Omidewá, da irmã Tânia de Iemanjá e dos irmãos Márcio Martins e doutor Adriano Moraes Migliavacca, pesquisador de literatura africana, do *Ilê Asé Omidewá*, Porto Alegre/RS, e meu, Onilia Araújo, esta discípula-aprendiz que enfim toca a ponta do pé na encruzilhada.