A certa altura, lá no primeiro terço de suas memórias reunidas no livro Woody Allen: a Autobiografia (Globo Livros, tradução Santiago Nazarian), o diretor americano escreve, ao narrar os antecedentes de seu encontro com a Rainha Elizabeth na segunda metade dos anos 1960, quando ele estava em Londres filmando Cassino Royale (o primeiro filme com esse nome, e não aquele que tornou Daniel Craig famoso):
“Eu tinha acabado de dar um tapa num baseado e virado uma caneca de cerveja preta, de forma que estava bem chapado.”
O causo termina com Allen, meio que em estado alterado de consciência, se ajoelhando diante da Rainha para ser sagrado cavaleiro sem se dar conta do que está fazendo. Não fosse a pista deixada clara pelo absurdo da situação, ele mesmo revela na linha seguinte que tudo não passa de uma de suas piadas elaboradas: “Isso não aconteceu exatamente assim”.
Umas cem páginas depois, Allen faz uma digressão a um comentário sobre seu filme Memórias para descrever o quanto sua vida é regrada e sem graça:
“Sempre tive receio de mudar minha percepção e não usava nem óculos escuros por esse motivo. Até hoje, nunca dei nem mesmo um trago num cigarro de maconha.”
Essa contradição entre uma declaração super séria e uma piada sutil escrita no mesmo livro parece resumir, com muita precisão, a grande virtude e os grandes problemas da autobiografia de Allen, lançada no ano passado: uma certa esquizofrenia tonal em que uma narrativa leve e em tom inteligente, pleno da voz autodepreciativa do diretor, é seguidamente interrompida por longos trechos de “ok, é hora de falar sério” em que ele esmiúça detalhadamente o que considera uma “incansável armação” gestada ao longo de três décadas por sua ex-esposa Mia Farrow e que parece ter finalmente obtido sucesso nos últimos anos. O mesmo autor que se entusiasma pela dinâmica das próprias piadas a ponto de inventar histórias que claramente não são verdade, mas que soam engraçadas, parece ter escrito todo este livro com o propósito de “fazer sua verdade prevalecer”.
Esse conflito entre o tom sério de denúncia e o anedotário galhofeiro de quem não está realmente focado na verdade cronológica pode ser interessante numa obra literária, como um conto ou um romance, ou mesmo nos filmes de Allen, que mais de uma vez usou nas telas essa estrutura “fraturada” de misturar drama e comédia em obras como Melinda e Melinda ou Crimes e Pecados. Mas é um problema incontornável num trabalho a princípio regido pelo pacto da não ficção. Seria até mesmo de se esperar que a autobiografia de um dos grandes comediantes do cinema fosse repleta de jocosidade como um número de stand-up. Mas aqui o que se tem são dois livros em que o amargor irreprimível do primeiro simplesmente cancela qualquer efeito cômico obtido pela leveza do segundo.
Começo precoce
Allen narra sua vida em uma prosa bastante fácil de reconhecer pelos que acompanham seu trabalho: ágil, inteligente, construindo seus momentos de comicidade e encadeando as piadas ao sabor da composição. E ao fazer isso, talvez voluntariamente, desnuda o caráter obrigatoriamente artificial de qualquer autobiografia. Escrever um texto de não ficção sobre você mesmo é sempre uma performance, não um documento fidedigno, e Allen em vários trechos parece saber disso.
Sua biografia é dedicada a construir algumas imagens que fogem do lugar-comum dos estereótipos criados a seu respeito ao longo dos anos – em parte com a ajuda dos papéis recorrentes de Allen em seus próprios filmes. Filho de uma dona de casa e de um ex-militar carismático, mas enrolado com questões de dinheiro e sempre metido em esquemas que dão errado, Allen salienta na primeira fase da obra que, ao contrário do que se poderia imaginar, foi um garoto popular no colégio, obcecado por crimes de gângster e por truques de mágica (ambos elementos que voltariam a dar as caras com frequência em suas produções). Também faz questão de pintar a si mesmo como a verdadeira antítese dos fãs de seus filmes (quando ele tinha, claro, fãs mais ativos em seus louvores, pincipalmente nas décadas de 1980 até 2000): não se considera um pensador sofisticado ou um burguês de sólida formação intelectual. Ao contrário, diz ter passado a infância lendo quadrinhos e assistindo a filmes, e que só consegue convencer como intelectual porque usa óculos e sabe fazer uma ou duas citações soarem apropriadas na conversa certa (até aí, diga-se de passagem, esses são os mesmos truques de muitos intelectuais que eu conheci de verdade). Mas, neste livro, esse tipo de declaração soa bastante afetada quando o texto é pontuado por imagens e comparações descritivas que mostram que Allen tem sim uma bagagem de cultura significativa, e talvez esteja só fazendo gênero (uma impressão que o livro provoca o tempo todo, aliás)
Allen estourou cedo no showbiz. Começou mandando piadas para uma coluna do jornal Daily Mirror (não confundir com o tabloide inglês de mesmo nome) quando ainda estava na escola. Daí passou a outros jornais. Conta, aliás, que a vergonha de ser zoado pelos colegas por aparecer no jornal o levou a mudar seu nome de Allan Konigsberg para o Woody Allen que seria a partir dali seu “nom du plume”. A visibilidade que a publicação recorrente de suas piadas no jornal provocou valeu um convite para uma agência para escrever piadas para outros comediantes. Daí, com a ajuda de um parente distante, o também humorista Abe Burrows, arrumou seu primeiro contrato como redator para TV e começou a decolar. Fez stand up enquanto tentava escrever peças para o teatro e logo estava no cinema.
Superficialidade intelectual
O tom autodepreciativo da coisa toda torna-se logo cansativo. Contudo, ao comentar sobre sua própria superficialidade intelectual, surpreendentemente Allen não parece estar mentindo. Com o claro intuito de deixar de si mesmo uma imagem civilizada neste livro que se assemelha a um testamento, o diretor é sempre gentil e tem comentários elogiosos a quaisquer profissionais com quem já trabalhou em sua longa carreira. Ao mesmo tempo, poucos desses comentários vão além das platitudes menos inspiradas. Os atores com quem trabalhou são grandes, excelentes, ótimos, fantásticos (palavras que ele usa também para as performances de Mia Farrow em seus filmes), mas há poucos insights de um dos diretores mais ativos do cinema contemporâneo sobre O QUÊ os torna bons. Aliás, para alguém com tanto tempo de cinema, é espantoso o quão pouco Allen de fato reflete sobre o meio. Suas principais conclusões ao fim da leitura do calhamaço são: a) ninguém entende como promover seus filmes, apesar das inúmeras tentativas já feitas. b) na maioria das vezes, quando um filme dá errado, mesmo um dos seus, o motivo raramente recai sobre algum aspecto técnico no set de filmagem, e sim em uma falha localizada em um ponto mais remoto, o do roteiro. c) ele muitas vezes discorda da apreciação geral de seus filmes. Crimes e Pecados, celebrado pela crítica como uma mistura equilibrada de comédia e drama com suas duas histórias paralelas, para ele naufraga na parte cômica, por exemplo. Também reconhece nunca ter feito um grande filme à altura de seus ídolos ou mesmo de seus contemporâneos mais talentosos, como Scorsese e Spielberg, mas isso pode ser mais um dos lances de falsa modéstia que povoam o livro.
Para piorar, quando fala das atrizes com quem trabalhou, Allen lembra o tempo todo o seu leitor, ainda que de modo involuntário, de que é um homem de 85 anos preso em certa mentalidade antiga. Não há uma única mulher sobre quem Allen não estenda comentários físicos que deveriam soar elogiosos, mas são apenas constrangedores, como os daquele tio inconveniente que todos têm (e que meio que virou o personagem político por excelência do Brasil contemporâneo). Scarlett Johansson era uma presença diante da qual “era preciso lutar para não ser dominado pelos feromônios”, Carla Bruni era “deliciosa” e por aí vai. Quando reflete sobre os problemas de seus relacionamentos amorosos e muitos casamentos, embora sempre pareça falar bem da maioria de suas ex, há pelo menos dois casos em que diz que ignorou “sinais de alerta” preocupantes sobre uma possível demência da parceira em questão (no caso, a também atriz Louise Lasser e a própria Mia Farrow, claro) porque estava “inebriado pela beleza” da parceira em questão. É assim o tempo todo – talvez a única mulher a não receber esse tratamento seja sua mãe, descrita desde o início como muito feia (um detalhe significativo para um diretor com tantos laços com a psicanálise, embora ele também diga no livro que seus anos de análise não fizeram nada por ele).
As denúncias
Logo, aqui temos um autor cômico cheio de boas anedotas que claramente tenta fazer desta autobiografia lançada na sequência de uma nova onda de acusações contra ele uma performance de modéstia, nem sempre com o melhor dos sucessos. Ainda assim, se esse fosse o tom da escrita e do livro, haveria algo com o que lidar. A biografia como uma performance exagerada de virtude poderia ser inclusive o objeto da sátira que Allen põe no papel e teríamos um grande e ambíguo exemplar do gênero. A questão é que toda essa leveza e comicidade autodepreciativa voam pela janela quando Allen ocupa praticamente um terço do livro a recontar em um tom de denúncia, com detalhes excruciantes, não apenas o caso da acusação que sua ex-mulher imputa pelo abuso de sua filha mais nova, Dylan (um caso no qual Allen tem sim o benefício da dúvida depois de duas investigações concluírem por sua inocência) quanto seu relacionamento com Soon-Yi Previn, enteada de Mia a quem ele conhecia desde os 10 anos de idade.
Allen é deliberadamente vago sobre sua aproximação com Soon-Yi, a ponto de a cronologia ser um tanto confusa, mas insiste que seu caso começou depois de ela voltar para casa numas férias de faculdade, aos 22 anos (ele beirava os 60). Depois disso, ele apresenta sua versão de que Dylan (e por extensão os outros filhos adotivos e biológicos de Mia) foi alvo de um processo incansável de alienação parental para que acreditasse que ele abusou dela na idade de sete anos. Ele se estende nas duas investigações independentes que o inocentaram da acusação quando o assunto veio à tona nos anos 1990 e se ampara no depoimento de um dos filhos de Mia que corrobora essa versão, Moses. Além de relatar abusos físicos e descrever Mia como uma personalidade volátil mais interessada no frisson da adoção para fins publicitários do que para de fato cuidar das crianças que adota, Allen também insinua, ainda que de modo sutil o bastante para parecer que não, que Mia pode ter seduzido tanto o investigador do caso quanto o primeiro juiz a cuidar da causa.
É compreensível que Allen, finalmente acossado no fim de sua carreira pela eficiência com que seu próprio filho, Ronan, conseguiu relacionar as acusações antigas com as novas que deram origem aos movimentos Times Up e MeToo, redija um libelo em sua própria defesa, não estou aqui questionando isso. Estou é, ao analisar o livro para além de qualquer consideração fora dele, dizendo que essa parte simplesmente não casa com a outra, a da narrativa leve e jovial com a voz característica do humorista que Allen é. Além de tudo, como Allen claramente cria uma persona mais modesta e inocente do a que se entrevê nas entrelinhas, ele sustenta o tempo todo que os maus tratos que Mia infligia a seus filhos nunca foram percebidos por ele durante 13 anos de relacionamento, ainda que o casal não morasse junto. E isso imediatamente soa um alarme (para usar uma expressão do próprio Allen no livro) sobre o quão autocentrado o diretor é, mesmo tentando o tempo todo negar essa percepção.
O que se tem, então, é uma autobiografia que encarna o que Allen é hoje em dia. Um escritor e humorista habilidoso que assume uma persona autodepreciativa e que parece às vezes exagerar nela (é difícil crer que Allen REALMENTE se tenha em tão baixa conta na vida real e ainda assim se escale para ser o par romântico de Julia Roberts, por exemplo) e no meio disso todo um tumulto e ranger de dentes que contamina parte de sua recepção a partir de um determinado momento.