O escritor francês Michel Foucault proferiu uma série de conferências a que deu o título de A verdade e as formas jurídicas. Sua fala aconteceu no Brasil, em maio de 1973, organizada pelo Departamento de Letras da PUC-Rio.
Li há algum tempo o livro que reúne essas conferências e uma das ideias, que cito de memória, sem ir buscar precisamente os termos da sua formulação, me marcou. Trata-se de como surgiu o princípio do confinamento e da permanente vigilância.
Na Idade Média, as pessoas que tinham um comportamento desviante corriam o risco de serem denunciadas para a autoridade religiosa. Era feita uma investigação e, caso a denúncia fosse comprovada, a pessoa poderia ser condenada à morte.
Para proteger essas pessoas, seus familiares passaram a confiná-las. Colocavam-nas numa casa e as vigiavam permanentemente. Foucault mostra que esse modelo acabou virando a forma de organização social que se estende, irracionalmente, até os nossos dias. De tal modo que uma penitenciária, uma escola ou uma empresa se organizam da mesma maneira. As pessoas passam o dia confinadas e vigiadas, como se, caso estivessem livres, não fossem capazes de conduzir seu destino.
A pandemia trouxe, pela impossibilidade de confinar um grande número de pessoas num mesmo lugar, o desafio de organizar de outra maneira as atividades que antes eram feitas exclusivamente nesse modelo herdado da Idade Média. O resultado mostrou que as pessoas, usando as novas tecnologias de comunicação no mundo em rede, podem sim trabalhar em casa, de qualquer lugar, gerindo seu tempo e gerando riqueza e resultados para as empresas. As atividades em grupo seguiram funcionando através de reuniões à distância, que ocorreram até com mais facilidade de juntar numa mesma tela quem teria dificuldade de estar lado a lado presencialmente.
Também os custos com aluguéis comerciais, luz, água, equipamentos, transporte e alimentação diminuíram para os empregadores. Já os funcionários relatam um melhor equilíbrio mental por poderem se relacionar mais com seus familiares. Passaram a ter menos doenças, como gripes, por terem menos exposição a vírus. Passaram a ter menos stress por não terem que se deslocar seja no transporte público seja nos engarrafamentos.
Agora, nesse mundo pós-pandemia, temos um outro cenário nas cidades. Os imóveis comerciais diminuíram sua ocupação, reduzindo a renda de quem investia nisso. O comércio das regiões próximas aos grandes centros corporativos reduziu seus lucros.
Ergueu-se, recentemente, nesse cenário a voz de um dos homens mais ricos do mundo, Elon Musk, afirmando que não é justo que umas pessoas possam trabalhar remotamente e outras de atividades que não comportam esse formato não. Empresas como Google fizeram coro e estão exigindo que seus funcionários frequentem o escritório três vezes por semana. O argumento para a volta é que o convívio presencial aumenta a integração. Argumento discutível, pois nunca se fez tanta reunião como nesse ambiente virtual.
Já uma pesquisa recente, feita pela startup Relevo com trabalhadores do formato híbrido, relata que 79% procurarão um novo emprego caso sejam convidados a voltar ao confinamento presencial. Viver de forma autônoma, com uma ideia de produtividade associada ao resultado objetivo do trabalho pautou o aprendizado de empregadores e empregados nesses últimos anos. Vender seu trabalho, mas não seu tempo, parece ser um ganho de que muitos trabalhadores não querem mais abrir mão. As novas tecnologias também mostraram que é possível vender sua força produtiva diretamente, sem precisar estar empregado.
Se um velho mundo está falindo, não adianta querer impor que não vá à falência com ameaças de desemprego aos funcionários que conquistaram o modelo híbrido. A autoridade religiosa já não tem mais o poder, como no mundo medieval, de mandar os desviantes para a fogueira.
Foto da Capa: Mizuno K / Pexels