O poeta real sabe que as palavras e as coisas não são a mesma entidade e por isso, para estabelecer uma precária unidade entre o homem e o mundo, nomeia as coisas com imagens, ritmos, símbolos, metáforas e comparações. As palavras não são as coisas: são pontes entre elas e nós.
Octavio Paz
Num conhecido e esclarecedor ensaio, Edmund Wilson diz que “James Joyce é o grande poeta de uma nova fase da consciência humana”. O mundo de Joyce está sempre mudando, conforme seja visto por diferentes observadores em tempos diferentes, como também muda a própria consciência humana. Um mundo assim, não pode ser descrito com abstrações artificiais e com fórmulas do passado. Ou sob a ótica de instituições, grupos e indivíduos ou situações psíquicas instáveis ou não, dualismos entre o bem e o mal, espírito e matéria, instinto e razão, conflitos entre paixão e dever, entre ética social e interesse pessoal. No imenso e revolto mar joyceânico estas concepções não são ignoradas, elas lá estão nas mentes dos personagens bem como as realidades que as representam, mas, como na física subatômica e na filosofia moderna, são todas reduzidas a um “continuum” de eventos infinitamente pequenos.
Ainda segundo Edmund Wilson, Joyce, a partir desses eventos, edificou um quadro espantosamente vivo e fiel do mundo cotidiano, o qual possibilita uma devassa implacável e um acompanhamento das variações, complexidades e perplexidades de tal mundo, como nunca foi feito antes. Além disso, pioneiramente, Joyce comungou com Breton a técnica literária do fluxo de consciência. Só que em vez de reproduzi-la sem qualquer controle, como na escrita automática dos surrealistas, enquadrou-a no esquema de uma composição rigorosamente literária.
O recurso literário de Joyce, consubstanciado exemplarmente no monólogo interior ou fluxo de consciência de Molly (Penélope) no último parágrafo de Ulisses, baseia-se na psicanálise a qual Joyce conheceu com seu amigo e aluno Ítalo Svevo (1861-1928/A Consciência de Zeno). Mas, também, foi elaborado graças à erudição de Joyce e ao seu conhecimento da natureza primeva da consciência e do inconsciente, sendo este a consciência do homem primitivo e aquela a consciência do homo domesticado (subjetivado e subjugado) pela cultura.
E o inconsciente não conhece a moral. Também ignora outras convenções e normas morfológicas e sintáticas da linguagem tais como aparecem nos sonhos e no romance de Joyce. Dessa maneira, o desterrado dublinense, baseando-se na psicanálise e na linguística, antecipou o surrealismo. E Lacan.
E assim, segundo a apropriada expressão de Álvaro Lins, Joyce foi “um revelador do caos num mundo em desordem”. Não desdenhou, nem o que está acima nem o que está muito abaixo do homem natural. Consciência e subconsciência, sacralidade e animalidade, ideias e instintos, natureza física e natureza psíquica, é o ser humano sempre por inteiro o que Joyce busca apresentar em sua obra.
E no monólogo final, profundo, noturno, soturno de Molly Bloom encontra-se o mais saboroso (re)sumo de Ulisses. Molly representa o corpo, a terra ctônica, a rapsódia da carne como escreveu Edmund Wilson. Como a terra, ela concebe vida aos personagens e sente um parentesco intensamente maternal por todas as criaturas vivas, como seriam as mulheres nas primitivas sociedades matriarcais, (Mutterrecht) descritas pelo gênio de Johan Jakob Bachofen (1815-1887)
São estas ideias e sentimentos ctônicos-maternais que Joyce nos lembra do começo ao fim de seu romance. No início, é Stephen Dedalus, acicatado pelo remorso quem diz: “Mãe! Deixa-me ser, deixa-me viver “. No fim é a grande mãe que volta na figura de Molly repetindo a palavra SIM, a palavra mais proferida pelas mães de todas épocas e culturas.
“…e os rosais e os jasmins e gerânios e cactos e Gibraltar eu mocinha onde eu era uma Flor das Montanhas sim andaluzas costumavam ou devo usar uma vermelha sim e como ele me beijou contra a muralha mourisca e eu pensei quereria eu sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus os meus braços em torno dele sim e eu puxei ele pra baixo pra mim para ele poder sentir meu peito todo perfume sim o coração dele batia como louco e sim eu disse sim eu quero Sims “.
E assim completou-se o viconiano círculo. (Gian Batista Vico, século 18)
Sim.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras
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