“É tudo tão fútil, não acha? Ela viveu mais de 70 anos. E veja o que sobrou. Nos setenta e poucos anos de vida dela, ela deve ter vivenciado todo o tipo de coisa. Mas só resta agora uma imagem. Sabe, eu me valorizo muito. Para os outros, eu posso ser apenas uma idosa. Não há mais o que esperar. As pessoas me perguntariam por que me valorizo. Ainda que eu sinta pena de mim, eu espero que você valorize a sua vida. Espero que ela signifique muito para você.” Han Jim-min (Kim Hie-já) Radiante, SE 01 EP 09.
O mundo perdeu o Papa Francisco na última segunda-feira. Eu perdi minha tia quase na mesma data, no domingo. O mundo inteiro conhecia o Papa Francisco. Tirando eu, minha família e pacientes e servidores da clínica em que minha tia esteve internada, quase ninguém a conhecia. O Papa Francisco, por ser Papa, tem cobertura da TV Vaticano, rede social, milhões de imagens sobre ele, incluindo sua chegada ao céu e a recepção de Jesus feita por IA (disponível aqui). Minha tia não possui registro algum na rede mundial de computadores e eu mesmo tenho poucas imagens dela. O projeto de vida do Papa Francisco era de proteção aos pobres; minha tia foi muito pobre, teve como único projeto de vida sobreviver neste mundo à esquizofrenia. Eu vejo o mundo inteiro chorar a morte de Francisco, eu choro a morte da minha tia. Não é um julgamento, é só uma constatação das diferentes formas de contemplação da morte.
Uma de duas irmãs que vieram para Porto Alegre ainda muito jovens nos anos 50 – a outra é minha mãe, já falecida –, minha tia, nesses anos, ficou em casas de parentes e pensões enquanto buscava trabalho e fazia bicos. Ambas viveram a transição do interior para a capital numa época em que o capitalismo ainda estava enraizando-se em Porto Alegre e éramos uma cidade, não uma metrópole. Viveram, por sua baixa instrução, as dificuldades de conseguir emprego e sobreviver como muitos outros de sua geração. Minha mãe tinha lá suas manias, mas minha tia era pior, muito cedo mostrou-se vítima da esquizofrenia. Eu tenho 60 anos e minha memória já faz suas estripulias, mas lembro de que convivi com minha tia apenas um ou dois anos, lá pelos meus 8 ou 9 anos. Ela ajudava minha mãe nesse período, mas depois desapareceu das relações familiares, viveu apartada da família devido a doença e outras circunstâncias, para ser encontrada décadas depois. Foi um curto tempo de convívio, mas nunca a esqueci. Quando a reencontramos, eu e minha prima psicóloga, tentamos cuidar dela como foi possível, retirando-a de clínicas suspeitas onde já estava por alguma razão, para aquelas que julgamos oferecerem um melhor atendimento.
É claro que as trajetórias de vida entre o Papa e minha tia são diferentes e determinadas pelas condições de vida, mas também como o normal e o patológico determinam quem somos. Eu fiquei muito triste, como todos, com a morte de Francisco, mas confesso que fiquei muito mais triste pela morte de minha tia. Eu vi imagens de fiéis chorando a morte do Papa pelo mundo inteiro, mas hoje, segunda-feira, dia em que escrevo este artigo e que o mundo inteiro olha para ele, só posso dizer que fiquei muito triste por sua morte, mas que chorei mesmo foi por minha tia. Diz uma passagem bíblica sobre uma trave nos olhos: “Como podes dizer a teu irmão: deixa-me tirar o cisco do teu olho, quando tu não vês a trave que há no teu próprio?” (Lucas: 6, 42). Da mesma forma, primeiro choro a perda de minha tia para depois me entristecer com a morte de Francisco.
O Papa como notícia
Não deixo de reconhecer como todos o valor do Papa Francisco, apenas reconheço as diferenças entre as mortes. Alain de Botton, em ‘Notícias: Manual do Usuário’ (Intrínseca, 2015), lembra que, mais importante para educar as populações do que a escola, são as ondas do rádio e as telas. A razão é que, enquanto vivemos parte de nossas vidas em contato com os bancos escolares, estamos em contato por toda nossa vida com as notícias que vemos na TV e é impossível negar que exercem uma influência maior que qualquer outro meio. “Uma vez concluída a educação formal, o noticiário é quem passa a nos ensinar”, diz Botton. O que aprendemos quando contemplamos não apenas a morte televisionada em escala planetária e incessantemente, não apenas do Papa, mas de tantas outras celebridades mundiais?
A morte do Papa coloca a ambiguidade do que dizia o filósofo Hegel sobre o noticiário: se ele [o noticiário] ocupa o lugar da religião como fonte de orientação e referência de autoridade, a morte do Papa é esse retorno triunfante da igreja ao seu lugar, agora como pauta. Esse televisionamento massivo quer nos ensinar que há mortes mais significativas do que outras, mas neste momento penso que há apenas uma morte, que é dolorosa para os que ficam vivos. Eu olho a forma da cobertura da morte das personalidades extraordinárias e não consigo parar de pensar na indústria que cerca esse jornalismo. Essa repetição constante, que nos termos de Georges Bataille é da natureza do excesso, é a mesma que produz, às avessas, nosso apagamento da memória. Lembraremos dessa catarse adiante? Diz Paul Virilio em Estética do Desaparecimento (Contraponto, 2015): “Nesse ponto, continuamos no campo da ilusão cinemática, da miragem da informação precipitada na tela que faz com que, quanto mais informado é o homem, mais se estenda ao redor dele o deserto do mundo”. Francisco foi notável por suas realizações para o avanço da igreja católica e que todos devemos conhecer, mas é preciso lembrar também que cada trajetória individual é uma história. Pessoas simples só têm espaço naquela página escondida ao final dos jornais que passamos o olhar quase por curiosidade e que se chama obituário.
Esse modo de distinguir as pessoas até no momento de sua morte é muito injusto porque é produto da visão elitista que nos diz que somente são de consideração ou admiração as pessoas que tenham contribuído à sociedade e não as pessoas simples e humildes, o que evidentemente oculta o fato de que a morte de minha tia também pode ter sido efeito dos problemas da humanidade que foram o pano de fundo de sua vida. Nosso impulso de admiração nos leva a transformar o Papa Francisco em uma celebridade, mas ele mesmo nunca quis esse lugar, queria que seguíssemos suas lições, e ele deve ser lembrado exatamente por isso, por seu voto de simplicidade, exatamente como foi a vida de minha tia. O que Botton propõe é que não se trata de eliminar nosso amor à celebridade, mas otimizá-lo de forma inteligente e frutífera. Todos, e eu também, admiramos o Papa Francisco por suas obras. Mas eu admiro também minha tia por ter simplesmente sobrevivido, chegado aos 86 anos com uma doença mental e num mundo que nunca a tratou de forma gentil, e isso, para mim, também é importante. O Papa Francisco é um herói de nossa época, mas não haveria também outras formas de heroísmo?
O heroísmo cotidiano como notícia
Sobreviver ao capitalismo deveria ser considerado um ato de heroísmo. A antiguidade festejava em estátuas as pessoas consideradas excepcionais, mas hoje pouco falamos daquelas que sobreviveram à própria humanidade, ao próprio capitalismo que nos organiza. Seres humanos comuns deveriam ser objeto de admiração pelas ações extraordinárias que fazem graças ao trabalho duro. A forma como relatamos ou não suas histórias diz um pouco de como somos. Deveríamos ser capazes de admirar tanto famosos quanto não famosos, tanto celebridades quanto cidadãos comuns. Botton afirma que admiramos celebridades pelo desejo de ser bem tratado: “o que move a vontade de ser famoso é o desejo por respeito”. O capital, ao contrário, não trata com respeito os pobres, só os ricos. A miséria é a condição que retrata isso e o efeito psicológico é terrível. ”Podemos passar a desejar a fama desesperadamente por perceber como é intensa a dor de ser ignorado, tratado com condescendência, relegado a um canto, empurrado para o fim da fila, considerado um ninguém ou um convidado a voltar a telefonar dali a algumas semanas” (Botton, p. 153).
Consigo imaginar como amplificador da esquizofrenia de minha tia exatamente isso: quando perguntei, logo que a reencontramos, uma semana depois da morte de minha mãe e um ano após a entronização do Papa Francisco – casualidade, milagre? – como ela sobreviveu no tempo em que desapareceu da família, minha tia disse “por aí, vendendo balas e outras coisas pelo mundo afora”. Ignorada, relegada a um canto, empurrada pelo mundo: eu gostaria que o mundo pudesse ter sido gentil e respeitoso não somente com ela, mas com todos os mais pobres, para que eles também não enlouquecessem. Como na tragédia do passado em que fatos trágicos servem de construção de um relato educativo, é preciso um esforço para distinguir, no emaranhado das notícias que cercam a morte do Papa Francisco, os modos como nossa sociedade também mata todos os dias simbolicamente todos os que estão fora do circuito do capital. O Papa lutou para fazer a defesa dos mais pobres contra as mazelas do capitalismo, mas o que diria ao final, ele vendo a si próprio digerido por esta imensa máquina capitalista? Já se fala no aumento do turismo em Roma, e sabe-se lá quantas “lembrancinhas” não estão sendo vendidas, logo dele, que preferiu carregar no peito uma cruz de metal comum e não uma de ouro. Será que realmente ouviram o que ele dizia? A repetição infinita dos detalhes de sua morte é apenas mais uma busca compulsiva da audiência, fonte de lucro: devemos fazer a crítica que diz que isso é um modo de instituir o indistinguível, a morte desigual. Não, ela é igual para todos.
A minha tia
Este é mais um texto intimista porque desejo que meu próximo livro seja sobre a velhice. Como já sabem, dei entrada recentemente no time dos 60 anos. Cada um envelhece como quer, e eu escrevo sobre o dia a dia de um aposentado, fase em que começamos a pensar na morte. Minha mãe tinha uma notável perspectiva, dizia que nunca teve medo da morte. Mas eu sei que ela ao menos se prevenia. Seu céu era garantido pelas centenas de velas que acendia. Morreu de infarto fulminante – há mortes piores, acamado, e melhores, dormindo. A vela valeu a pena. Meu último artigo em Sler envolveu um caixão de defunto, que poderia ser, na visão espírita, um aviso da morte de minha tia, ainda que na visão simbólica, seja um indicador de que estou em análise de meu mundo interior.
Estou no dia posterior à morte de minha tia na clínica que a abrigou para receber seu atestado de óbito. Encontro uma enfermeira que me recebe. Agradeço seu cuidado e o de sua equipe nesses anos. É o atendimento especializado que cuidou da “vozinha dos cabelos brancos”, como ela era chamada. Desde que estive ali, vi que houve várias reformas no lugar. É um lugar tranquilo. Ouço apenas os cães. Não ouço gritos, o que é bom sinal, já que é também uma instituição psiquiátrica. Me emociono ao contar que apenas tenho a sua memória de meus 8 a 9 anos, quando ela auxiliou minha mãe e pude estudar, comprar os cadernos para a segunda ou terceira série. Ela me abraça e sente-se reconfortada com meu gesto. “Ela teve as comorbidades da idade”, ela me disse.
Enquanto aguardo, lembro das vezes que vim aqui com minha prima psicóloga. Havia uma boa dezena de pacientes, é claro. Havia também uma sala da equipe de enfermagem, uma sala de refeitório e os quartos coletivos. Lembro que minha tia era pequenina e magra e que comia pouco. Minha mãe, ao contrário, comia muito como para suprir um vazio por minha falta. Eu, casado, saí de casa. Morreu dez anos antes de minha tia, mas feliz. Você pode ser feliz sendo esquizofrênico? Fazia parte do quadro de lembranças de minha tia na minha infância os medos dela dos objetos, as visões. Era o processo esquizo, como diz Deleuze e Guattari. Mas eu lembro dos momentos em que eu via minha tia e minha mãe conversando no banco da praça Jaime Teles enquanto eu ficava no balanço. Um mundo pobre, mas feliz.
A instituição cuidadora
Agora ouço a enfermeira reclamar das condições de trabalho, da falta disso e daquilo. Vejo-a correndo de um lado para outro, coordenando colegas. Está preocupada em cortar a grama, o que cria um ambiente positivo para os pacientes. Ela organiza ali os trabalhos. Vejo a cena e lembro-me de mim correndo para o trabalho, deixando de prestar atenção aos detalhes do mundo. Saímos da infância para correr, é o frenesi do trabalho diário. Na boa idade em que estou recém-aposentado, volto a prestar atenção aos detalhes. O mundo volta a passar devagar. No mundo da enfermeira, o mundo passa rápido.
Isso é natural. O dia a dia nestes espaços é de lidar com as comorbidades de pacientes, levá-los para postos de saúde, cuidar de refeitórios. É uma instituição privada, que merece estar beneficiada por políticas públicas. Minha tia passou por algumas delas, em piores condições, e quando descobrimos, a mudamos. Mas é assim, ainda a precariedade do mundo do trabalho capitalista nos persegue velozmente, queremos melhorar porque nesses lugares se trata da luta pela vida digna.
Chega o secretário da instituição. Ele, com o diretor, traz as fraldas necessárias obtidas por doação de órgãos públicos. Ele dá-me seus pêsames. Tem 84 anos, é baixinho, muito magro como minha tia. Seria essa outra das formas do desaparecimento de que fala Paul Virilio, não do mundo ou das coisas, mas dos corpos? Sabemos da perda de massa física na velhice, sabemos do emagrecimento, e por isso dizem os especialistas a necessidade de esportes, etc. É a vida que encolhe. Estamos perto do fim. Em casa à noite, confiro meu peso. Ainda igual.
Vestígios de uma vida
Ele me entrega os documentos: certidão de óbito, identidade assinada com o dedo, cartão do INSS, documentos do cemitério. É toda a papelada que resta da vida da minha tia. Tenho vontade de chorar como Lee Joon-ha (Nam Joo-hyuk) no final do episódio 9 do seriado coreano Radiante, o que faço depois sozinho como ele. Agradeço ao secretário seu trabalho. Ele cantarola bem baixinho para eu não perceber enquanto providencia os documentos. Eu também tenho esse hábito. Digo que também cantarolo porque acredito que “quem canta seus males espanta”. Ele ri. Desejo vida longa.
A esquizofrenia aparecia na minha tia como mania de perseguição, ela ouvia vozes, tinha visões. Às vezes, era simplesmente impossível uma conversa. Eu era uma criança e aquilo era incompreensível para mim. Agora, ali, eu sabia que ela foi medicada. Agradeço à outra funcionária: “De nada, é nossa obrigação. Ela foi sempre bem cuidada”, ela diz. Eles foram a família que ela teve, já que ela viveu isolada, de sua irmã e família, que depois foram sequestrados pela correria dos dias. Nos anos 70, a esquizofrenia ainda era de difícil acesso a um diagnóstico. Quando um familiar se perde no mundo, a família também se perde, não sabe o que fazer, deixa-se puxar pelo vento da história do qual fala o filósofo Walter Benjamin em suas Teses sobre a História.
A prima psicóloga
Tenho cinco primas. A prima socióloga, a prima espírita, a prima refinada, a prima comerciante e a prima psicóloga. Minha prima psicóloga tentou conectar-se à minha tia na clínica. Tive a sorte de, na minha infância, ter algo como uma grande família nessa reunião de parentes. Eu, pequeno, via meu tio leitor lendo exemplares da versão enorme do Correio do Povo. Isso foi inspirador. Ali ainda, antes de minha tia desaparecer, havia a ternura possível para personagens com essa história. Nunca tivemos muito sucesso em manter esse espírito de grande família, que hoje vemos apenas nos seriados coreanos. Ela se afastou, nós nos afastamos, fracassamos em nossa missão de localizá-la por quase quarenta anos, minha tia, e penso que isso aconteceu porque nos tornamos parte de um mundo que sempre lhe foi hostil.
Na clínica, eu e minha prima psicóloga éramos negados por minha tia em uns “dias ruins“ ou de “mau humor”, ou reconhecidos como familiares nos dias de “bom humor”, como diziam as enfermeiras. Não se trata de humor, mas de doença psiquiátrica, de efeitos da medicação. Falo com o diretor. Agradeço a ele. Ele me diz: “É da vida, o que temos na vida é nos programar para a morte.” Nesta vida, cada um tem sempre um papel e um lugar.” Essa é a noção de destino. Baudrillard, em Senhas (Difel, 2001), diz que o destino é uma forma de separação definitiva, irreversível, como a famosa placa continental americana a partir da qual certas águas vão para o Pacífico e outras para o Atlântico. “Mas [há] uma espécie de reversibilidade que faz com que as coisas permaneçam cúmplices”, diz Baudrillard. 64). Com isso, ele quer dizer que “o signo que conduz à vida, à existência, é o mesmo que conduz à morte.” Será, portanto, sob o mesmo signo fatal que as coisas terão começo e fim”. (p. 64). No mundo capitalista, quem nasce sob o signo da pobreza morre por ele.
O álibi das causas
Pergunto das causas da morte de minha tia como Baudrillard pergunta da morte da princesa Diana. “Podemos encontrar causas para a morte de Diana e tentar reduzir o acontecimento a essas causas. Mas apelar para as causas a fim de justificar os efeitos é sempre um álibi: não esgotaremos dessa maneira o sentido, ou a falta de sentido, de um acontecimento”, diz Baudrillard. Minha tia viveu a luta pela vida apesar da doença, e viver assim parece ser sem sentido. O Papa Francisco viveu a luta pelos pobres com grande simplicidade e humildade, e da mesma forma, transformar seu enterro em mais um espetáculo capitalista parece ser sem sentido.
É que a noção de destino desresponsabiliza quem acredito ter agravado a esquizofrenia de minha tia: a desigualdade entre ricos e pobres, a precarização do trabalho, a falta de tratamento nos anos iniciais da doença. Existem causas biológicas, mas o social importa. Para ela e para todos. Sou parte da última geração de minha família com algum direito, ao menos de uma aposentadoria digna. A geração que me precedeu e que era pobre ou doente, como minha mãe e minha tia, teve os benefícios mínimos do INSS. Isso foi muito importante. Que direitos terá a geração que virá depois de mim, depois que o Banco Mundial afirmar que a aposentadoria será aos 78 anos em 2060? (disponível aqui). Quem chegará nessa idade? Bem-vindo ao neoliberalismo, forma de capitalismo que se faz apenas quando o valor se torna signo de morte.
É o que diz Jean Baudrillard em A troca simbólica e a morte (Loyola, 1996). Ele parte da visão antropológica da economia, pois, para ele, todos os contextos são simbólicos. “É essa dimensão que está em toda parte em relevo da lei estrutural do valor. A força de trabalho se institui sobre a morte. É preciso que um homem morra para tornar-se força de trabalho. É essa morte que lhe negocia no salário” (p. 55). Para Baudrillard, a violência simbólica infligida ao homem como força produtiva “não é nada diante da equivalência, como signo, entre salário e morte” (idem). A morte de minha tia é a imagem que representa o mesmo sistema que a excluiu, marcada pela indiferença que é a regra de tudo nesse sistema. Essa indiferença entre morte e vida na sobrevivência, Baudrillard chama de morte diferida. Sob o capitalismo, “o trabalho é uma morte lenta”, diz o filósofo. A visão idealista diz que nos realizamos no trabalho. Nada disso. Para ele, o trabalho é como a morte diferida, e, portanto, lenta em relação à morte violenta. Por isso, o desejo da busca da eternidade, a cura das doenças pelo uso da tecnologia. Ele prefere, ao contrário, a visão de Georges Bataille, para quem “a prova de que a vida só é defeituosa é quando a morte lhe é tirada, que a vida só existe na irrupção e na troca com a morte” (p. 209). A última coisa a fazer na vida é aceitar a morte.
Minhas religiosidades
Acendi uma vela para minha tia em casa. A vela foi para Santa Rita. A passagem segundo a doutrina espírita leva alguns dias, e se existir, desejo que tudo corra bem. Não sou um católico praticante, mas tenho lá minhas crenças. Nunca gostei muito de cerimônias religiosas cheias de gente: gostava quando minha mãe me levava para igrejas sem a missa, vazia como a do Rosário, onde dava para ter um tête-à-tête com Deus, olhando a imensa pintura de seu teto, uma conversa reservada e silenciosa. Fique tranquilo. Só eu falava com Deus. Se eu o ouvisse, seria o problema.
A morte e o problema mental se misturam na clínica da minha tia. A enfermeira vai para a sala de trabalho para o computador. Listas a preencher. Nessas equipes se faz de tudo, da burocracia ao serviço fim. Precisa-se de concentração. Ela é magra, fala com atenção e é clara, porque nesses lugares é preciso falar bem para controlar multidões. A sala em que aguardo está a secretaria e o serviço social. Aqueles que não estão no processo produtivo, como minha tia, ainda assim ajudam a mover esse mundo. Instituições, profissionais e auxílios são criados. Políticas são desenvolvidas. A sociedade, na linha de Foucault, já encontrou novos meios para tratar seus loucos. Eles não vão para a nau dos loucos de Foucault, não ficam a vagar pelo mar. Agora, o que vaga é seu olhar, no olhar perdido dos pacientes em direção ao jardim.
Essas pessoas precisam de cuidado. Políticas neoliberais não cuidam. Ao contrário, são inservíveis do ponto de vista do capital. O Papa Francisco queria que cuidássemos um do outro. Mas somos individualistas demais. A multidão em Roma quer parar para ver o Papa Francisco, para fazer o quê? Uma… selfie! Por favor, isso não é Disney, é para ser o momento de lembrar uma lição.
Neoliberais não cuidam
Pessoas como minha tia precisam de cuidado. Políticas neoliberais não cuidam. Ao contrário, as veem como inservíveis do ponto de vista do capital. A morte é essa espécie de fim do tempo da vida. Diz Baudrillard que o par nascimento-morte, como o par origem-fim, é para nós tranquilizar por nos oferecerem um limite num mundo onde as coisas já não têm um. “O fim é também a finalidade de alguma coisa, o que lhe dá um sentido. Quando alguma coisa chega ao fim, é porque ela verdadeiramente se deu; ao passo que, se não há mais fim, entra-se na história interminável, na crise interminável, em séries de processos intermináveis. Nós já os conhecemos, eles já estão aí; basta ver o desenvolvimento interminável, desmedido, da produção material”, diz Baudrillard.
Por isso, em sua simplicidade, tanto o Papa Francisco quanto minha tia partilham coisas em comum. A primeira é a humildade. Quando o Papa veio ao Brasil para as atividades do Dia Mundial da Juventude, sua equipe surpreendeu-se com o fato de que Francisco queria carregar sua própria mala. A cena ficou registrada nas redes e é o gesto da humildade. Nunca vi minha tia reclamar de suas roupas, sempre muito simples, quando a visitava na clínica. Ela já havia passado por muitas coisas, e não seriam as roupas que a iriam irritar. Ambos foram também vítimas de seu tempo. Em 1973, em função das disputas entre facções bergoglianas e antibergoglianas, antes de ser papa, o hoje Papa Francisco foi mandado em exílio para Córdoba, distante cerca de 640 quilômetros de Buenos Aires. Minha tia viveu o exílio da família, por sua opção, não apenas pelas condições de seu mundo material, mas por causa dos conflitos de seu mundo psíquico. Ambos viveram um mundo militarizado, no caso de Francisco, o contexto militar durante o peronismo, e no caso de minha tia, o contexto autoritário brasileiro. Talvez simbolicamente, o Papa as reúna, já que ele nasceu no ano de nascimento de minha mãe e morreu no ano de morte de minha tia. A morte é esse “acontecimento fatal que marca verdadeiramente o fim, mas que tem, por sua fatalidade mesma, o selo de acontecimento” (p. 56).
Não podemos excluir os pobres e loucos das políticas públicas de cuidado porque não produzem mais-valia, exatamente porque o princípio do valor precisa ser matizado e ficar submetido ao princípio de solidariedade. O Papa Francisco dedicou-se a essa ideia. Para Bauman, no capital, pobres e todos os demais excluídos não passam de lixo humano, como são também todos os demais imigrantes e desempregados. Minha tia morreu na Páscoa. O Papa logo em seguida. A morte é o maior de nossos medos, mas a questão que se coloca nesses dias é como levamos a vida. Que sua lição seja a de que devemos lutar contra o capital para viver, ser solidários com os mais pobres e combater os males de um mundo desigual, explorador e incapaz de ser gentil.
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Foto da Capa: Gerada por IA.