Na passagem que liga o bloco da rua Tiradentes com o prédio mais antigo do Hospital Moinhos de Vento, é possível contemplar a copa do bosque preservado. Mais um dia de céu enfarruscado pela fumaça que assoma das queimadas e flui por um caudal atmosférico, que desce pelo continente.
A passarela envidraçada evoca um túnel do tempo. Entre encontros fortuitos, colegas de ofício, conhecidos, lembranças de décadas. Visitas a pacientes, na atividade profissional, e conquistas e dramas pessoais. O nascimento das três filhas, da neta, familiares em tratamento e, também, não poucas despedidas. Essas histórias vão compondo um laço de pertencimento, exigem compreensão, para quem trabalha num hospital, dos inúmeros papéis vivenciados.
No momento, minha preocupação é com um amigo que está em isolamento, devido ao tratamento que está fazendo. Mesmo próximo, a circunstância impõe que meu abraço de solidariedade seja telepático e a torcida silenciosa. Assim também foi no tempo gris da pandemia e que marcará para sempre a nossa geração. Ele irá melhorar, tenho certeza que sim, é forte e tem apoio de seus afetos.
O som de um piano tocado no saguão invade o devaneio. É Sofia, no intervalo do seu trabalho. Nos corredores, o canto do coral provoca o mesmo fascínio lenitivo. Aparentes paradoxos que trazem à consciência que o lugar não é território de exceção, sítio da vida em sua plenitude.
Com a habitual ênfase e simpatia, o pastor Ivo interrompe a caminhada para me cumprimentar. Agora aposentado, sua presença remete a valores que fazem parte da essência que precisa permanecer viva na alma da instituição. Corrijo a posição do meu crachá, foto para frente, ao lembrar-me dos encontros pelos corredores com a sempre atenta Schwester Íris.
Esse inventário de figuras que nos acompanham em caminhos em comum, quando são mais do que apenas presenças circunstanciais, também facilitam o fluxo cotidiano de uma instituição. Não somente num hospital, em repartições públicas, escolas, empresas. Tornam-se fundamentais, imprescindíveis, num local onde todos convivem com vulnerabilidades.
Somos seres em permanente busca de um abraço, figurado ou literal. Num hospital, onde a dúvida, a expectativa do resultado de um exame, o temor ao sofrimento e a dor, própria ou alheia, ocupam corações e mentes, o encontro com a cordialidade faz total diferença.
Um tipo especial, alegro-me sempre que encontro o Guilherme Streb. Ele é um personagem emblemático, não é o único que tem essas qualidades, mas é exemplar. Podemos encontrá-lo em diferentes áreas do hospital. Não espera ser chamado, oferece-se para ajudar, informa a quem vem para exames, consultas, indica caminhos, oferece-se para acompanhar quem precisa. Tem uma vocação especial para a empatia. Exerce-a de forma que encanta e conquista.
Esse “como posso ajudar” não é “somente o seu trabalho”, é bem mais. O bom Guilherme serviria de inspiração àquilo que o filósofo Nietzsche define como gentileza. A fidelidade a si mesmo e o cuidado com o mundo.
Em Humano, demasiado humano, aforismo 49, intitulado Benevolência (Wohlwolen, no original em alemão), Nietzsche afirma que entre as pequenas coisas, infinitamente numerosas e eficazes, às quais a ciência deveria prestar mais atenção, mais do que aquelas grandes e raras, desponta a benevolência.
Diz o filósofo “Refiro-me às expressões de ânimo amigável nas relações, ao sorriso dos olhos, aos apertos de mão, à satisfação que habitualmente envolve quase toda ação humana. Não há professor, não há funcionário que não junte esse ingrediente àquilo que é seu dever; é a atividade contínua da humanidade, como que as ondas de sua luz, nas quais tudo cresce; […] A boa índole, a amabilidade, a cortesia do coração são permanentes emanações do impulso altruísta, e contribuíram mais poderosamente para a cultura do que as expressões mais famosas do mesmo impulso, chamadas de compaixão, misericórdia e sacrifício. Mas costumamos menosprezá-las. […] A soma dessas doses mínimas é, no entanto, formidável, sua força total é das mais potentes”.
Os céus desse fim de inverno negam-nos a cor usual, o sol veste-se de uma beleza dúbia. Recordo um outro dia. Ao olhar para o alto do saguão de um dos blocos do Moinhos de Vento, vi um colaborador anônimo lavando com esmero as vidraças que compõe o teto. Aquela silhueta quase invisível lembrou-me o filme de Wim Wenders, “Asas do desejo”. A imagem me provocou e fez-me escrever esse pequeno poema: “Ergo olhos à luz / Anjos no céu do hospital / Purgam os vitrais.”
Torço para que Nietzsche, habitualmente pessimista, esteja certo da potência transformadora desse conjunto de atitudes benevolentes que permite respiros civilizatórios. São importantes aqui embaixo e talvez a única maneira de ensejar dias de firmamento azul e noites estreladas.
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