Falamos na semana passada de Inteligência Artificial e do que parece ser agora uma liberação de amarras nos EUA para se avançar mais rápido nas pesquisas da IA Geral, a despeito de precauções e regulações. A justificativa seria de que se os EUA titubearem, a China chegará na frente na corrida tecnológica, que há um ano – desde o ChatGPT – se acelerou. De fato, a China de hoje parece não primar por precaução e regulação, bem diferente da China de séculos passados, sendo simbólico o exemplo das navegações.
Quando, em 1421, uma frota de juncos de quase 150 metros foi lançada de Nanquim ao Pacífico, sob comando do almirante eunuco Zheng He, a missão era “fazer todo o caminho até o fim da terra para coletar tributo dos bárbaros e unir o mundo inteiro na harmonia confuciana”. Os portugueses ainda mal tinham saído da praia com seus navios bem menos impressionantes. Mas aconteceu que, com a frota de juncos já em alto mar, uma tempestade de raios se abateu sobre a Cidade Proibida, reduzindo a cinzas a empreitada estratosférica do imperador Zhu Di apenas nove meses depois de sua conclusão, assim como a morte de inúmeros de seus súditos leais. A tragédia foi vista como um péssimo presságio, que poderia se desdobrar em outras desgraças nessa conquista do mundo exterior – houve também uma questão de confronto entre Zhu Di e os grandes mandarins – e a China acabou se fechando em si mesma. Quase tudo que comemorasse as políticas expansionistas anteriores foi eliminado dos registros, e os juncos foram queimados no retorno, em 1423. (1)
Hoje, a China parece disposta a qualquer empreitada para se expandir ao mundo exterior – a ideia de “unir o mundo na harmonia confuciana” talvez pertença definitivamente ao passado e a palavra presságio deve ter sido riscada do seu dicionário. O exemplo mais evidente pode ser o de exploração do genoma humano, que provocou outra corrida entre os países a partir dos anos 90 – praticamente duas décadas depois de progressos e recuos com a tecnologia do DNA recombinante. Nos EUA, as terapias gênicas passaram a avançar rapidamente, mas, em setembro de 1999, foram paralisadas após o baque traumático com a “morte biotecnológica” do jovem paciente Jesse Gelsinger – a introdução de um vírus supostamente inofensivo que levava um gene para o seu fígado causou uma reação devastadora e fatal. (2) A China, no entanto, prosseguiu na corrida gênica executando sabe-se lá que tipos de testes até passar a oferecer, por exemplo, tratamentos com células-tronco por milhares de dólares. (3)
Com a Inteligência Artificial não podemos imaginar que seria diferente. São questões de longa história, complexas e complicadíssimas na minha opinião, e não estou propondo um julgamento da China, e nem dos EUA. Tem muita coisa acontecendo no mundo todo para que se defenda ou ataque categoricamente este ou aquele país na sua totalidade, até porque há áreas escuras e iluminadas na maioria dos países. Eu gostei muito do trabalho de Frédéric Martel, doutor em Ciências Sociais, Ciência Política, Direito Público e Filosofia, que visitou quase 50 países em quatro anos para montar uma espécie de cartografia da revolução digital no seu livro Smart. (4) Fiquei impressionada especialmente com a forma como governos e empresas lidam com a tecnologia na China, na Rússia, na Índia, em Israel, no Irã, etc. Dá para se ter uma ideia de que não sabemos muita coisa do que rola no campo de pesquisas tecnológicas no Oriente. E, friamente, nem no Ocidente, pois a informação que importa, em geral, é inacessível aos simples mortais.
Assim, a imprensa é que tem um papel crucial neste momento, dos maiores de toda a história, pois estamos diante de um fenômeno acima das capacidades individuais de cada veículo de imprensa, como disse a jornalista Marina Walker Guevara, especialista em jornalismo investigativo, editora executiva do Pulitzer Center: “Precisamos formar uma imagem mais nítida da inteligência artificial e, para isso, mais do que nunca, é preciso colaboração.” Marina fez carreira com grandes apurações colaborativas e foi vice-diretora do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, publicou reportagens em veículos como The Washington Post, The Miami Herald, Le Monde e BBC. “Sejam céticos quando se fala na invencibilidade e na inevitabilidade da IA. Por trás desse tipo de tecnologia não estão robôs infalíveis, e sim humanos com interesses econômicos e suscetíveis a erros. Não sabemos o que está por vir, mas sabemos o que podemos fazer hoje. Vamos questionar cada afirmação que recebermos das empresas de IA.” Confira a entrevista que Marina concedeu à revista Piauí no sábado passado (02), em São Paulo.
(1) Gavin Menzies, comandante de submarinos na Marinha Real do Reino Unido, residiu por dois anos na China e, ao se aposentar, se dedicou a escrever livros que exploram as navegações, buscando comprovar que os chineses tinham andado por mares nunca dantes navegados. Ele também lançou portais na internet, abrindo o debate e coletando dados do mundo todo que evidenciam suas teses, como a da destruição da Cidade Proibida (em 1421 – O Ano em que a China Descobriu o Mundo). Demorou séculos até que alguns estudiosos fora da China se interessassem pelo assunto e as teses de Menzies (que faleceu recentemente vítima da Covid-19) fossem mais conhecidas, mas ainda encontram resistência em grande parte do Ocidente.
(2) O gene: Uma história íntima, de Siddhartha Mukherjee. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Capítulo O futuro do futuro, páginas 489 a 539.
(3) GenÉtica, escolhas que nossos avós não faziam, da geneticista Mayana Zatz (São Paulo: Globo, 2011), é uma ótima introdução para esse assunto de terapias gênicas. Ver capítulo Pesquisas com células tronco e um alerta sobre o mercado paralelo, páginas 133 a 146.
(4) Smart – o que você não sabe sobre a internet, de Frédéric Martel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
Ilustração da Capa: Arte digital de Julius H. / Pixabay